VAYELECH

Posted on outubro 5, 2016

VAYELECH

Para Renovar Nossos Dias

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

O momento tinha chegado. Moisés estava prestes a morrer. Ele tinha visto sua irmã Miriam e seu irmão Aarão falecerem antes dele. Ele havia orado a D-s – não para viver para sempre, nem mesmo viver mais tempo, mas simplesmente, “Deixe-me ir lá e ver a boa terra além do Jordão” (Deut. 3:25). Deixe-me terminar a viagem. Deixe-me chegar ao destino. Mas D-s disse: Não: “Isso é o suficiente”, disse o Senhor. “Não fale mais comigo sobre esse assunto” (Deut. 3:26). D-s, que havia concordado com quase todas as outras preces que Moisés lhe dirigiu, recusou-lhe esta (1).

O que foi então que Moisés fez nesses últimos dias de sua vida? Ele emitiu duas instruções, as últimas dos 613 mandamentos, que teriam consequências significativas para o futuro do judaísmo e do povo judeu. O primeiro é conhecido como Hakhel, o mandamento em que o rei convoca o povo para se reunir durante Sucot após o sétimo ano de shemitá:

“No final de cada sete anos, no ano de cancelamento de dividas, durante o Festival de Tabernáculos, quando todo o Israel vier perante o Senhor teu D-s no lugar que ele escolher, você deve ler esta lei diante deles. Junte o povo – homens, mulheres e crianças, e os estrangeiros que residem em suas cidades – para que eles possam ouvir e aprender a temer o Senhor teu D-s, e seguir cuidadosamente todas as palavras desta lei. Seus filhos, que não conhecem esta lei, devem ouvi-la e aprender a temer o Senhor, teu D-s, enquanto você viver na terra que você vai possuir atravessando o Jordão”.

Não há nenhuma referência específica a este mandamento nos livros posteriores do Tanach, mas há relatos de encontros muito semelhantes: cerimônias de renovação da aliança, na qual o rei ou o seu equivalente juntavam a nação e liam a Torá ou lembravam o povo da sua história, convidando-os para reafirmar os termos de seu destino como um povo em aliança com D-s.

Na verdade, isso era o que Moisés vinha fazendo no último mês de sua vida. O livro de Deuteronômio como um todo é uma reafirmação da aliança depois de quase quarenta anos, e uma geração, da aliança original no Monte Sinai. Há outro exemplo, no último capítulo do livro de Josué (J. 24). Josué havia cumprido seu mandato como sucessor de Moisés, trazendo o povo através do Jordão, levando-os em suas batalhas e colonizando a terra.

Outro ocorreu muitos séculos mais tarde, no reinado do rei Josias. Seu avô, Menashê, que reinou por 55 anos, foi um dos piores reis de Judá, introduzindo várias formas de idolatria, incluindo o sacrifício de crianças. Josias procurou trazer a nação de volta à sua fé, ordenando entre outras coisas, a limpeza e reparação do Templo. Foi no decurso dessa restauração que uma cópia da Torá foi descoberta (2), guardada num esconderijo, para evitar que fosse destruída durante muitas décadas em que a idolatria floresceu e a Torá foi quase esquecida. O rei, profundamente afetado por esta descoberta, convocou uma assembleia nacional do tipo Hakhel:

Então, o rei convocou todos os anciãos de Judá e de Jerusalém. Ele foi até o Templo do Senhor com o povo de Judá, os habitantes de Jerusalém, os sacerdotes e os profetas, todo o povo desde o menor até o maior. Ele leu todas as palavras do livro do pacto, que havia sido encontrado no templo do Senhor. O rei estava junto à coluna e renovou a aliança na presença do Senhor, para segui-Lo e guardar os Seus mandamentos, estatutos e decretos com todo o coração e toda a alma, confirmando as palavras da aliança escritas neste livro. Em seguida, todo o povo se comprometeu com a aliança (2 Reis 23:1-3).

A mais famosa cerimônia do tipo Hakhel foi o encontro nacional convocado por Ezra e Nehemiá, após a segunda onda de retornados da Babilônia (Neh. 8-10). “De pé sobre uma plataforma, num dos portões do Templo, Ezra leu a Torá para a Assembleia, tendo posicionado os levitas entre toda a multidão para que pudessem explicar ao povo o que estava sendo dito. A cerimônia, que começou em Rosh Hashaná, culminou depois de Sucot, quando o povo coletivamente “se obrigou com uma maldição e o juramento de seguir a Lei de D-s dada por Moisés, servo de D-s, e obedecer cuidadosamente todos os mandamentos, regulamentos e decretos do Senhor, nosso Senhor”.

O outro mandamento – o último que Moisés deu ao povo – estava contido nas palavras: “Agora escreva esta canção e ensine-a aos filhos de Israel”, entendida pela tradição rabínica para ser o mandamento para escrever, ou pelo menos tomar parte na escrita, de um sefer Torá.

Por que especificamente estes dois mandamentos neste momento?

Algo profundo estava sendo processado aqui. Lembre-se que D-s tinha parecido brusco em sua negativa ao pedido de Moisés para ser autorizado a atravessar o Jordão. “Isso é o suficiente… Não fale mais comigo sobre esse assunto”. É esta a Torá e esta é sua recompensa? É assim que D-s retribui o maior dos profetas? Certamente não.

Nestes dois últimos mandamentos, D-s estava ensinando Moisés, e através dele aos judeus ao longo dos tempos, o que é a imortalidade – na terra, e não apenas no céu. Nós somos mortais, porque somos físicos, e nenhum organismo físico vive para sempre. Nós crescemos, envelhecemos, nós ficamos frágeis, morremos. Mas não somos apenas organismos físicos. Somos também espirituais. Nestes dois últimos mandamentos nos é ensinado o que é ser parte de um espírito que não morreu em quatro mil anos e não vai morrer enquanto existir um sol, a lua e as estrelas (3).

D-s mostrou a Moisés, e através dele a nós, como se tornar parte de uma civilização que nunca envelhece. Ela permanece jovem, porque repetidamente se renova. Os dois últimos mandamentos da Torá tratam de renovação, primeiro do coletivo e depois do individual.

Hakhel, a cerimônia de renovação da aliança de sete em sete anos, garantiu que a nação iria (re) dedicar-se regularmente à sua missão. Tenho muitas vezes argumentado que há um lugar no mundo onde esta cerimónia da renovação do pacto ainda acontece: os Estados Unidos da América.

O conceito de aliança desempenhou um papel decisivo na política europeia nos séculos XVI e XVII, especialmente em Genebra de Calvino e na Escócia, Holanda e Inglaterra. Seu impacto mais duradouro, porém, foi na América, onde foi usado pelos primeiros colonizadores puritanos e continua a fazer parte da sua cultura política até hoje. Quase todos os discursos de posse presidencial – a cada quatro anos desde 1789 – tem sido, explícita ou implicitamente, uma cerimônia de renovação da aliança, uma forma contemporânea de Hakhel. Em 1987, em discurso na celebração do bicentenário da Constituição americana, o presidente Ronald Reagan descreveu a Constituição como uma espécie de “pacto que fizemos não só com nós mesmos, mas com toda a humanidade… É uma aliança humana; sim; e além disso, um pacto com o Ser Supremo a quem nossos pais fundadores constantemente apelavam por assistência”. É dever dos Estados Unidos, disse ele, “renovar constantemente sua aliança com a humanidade… para completar o trabalho iniciado há 200 anos, um grande e nobre trabalho que é o chamado específico da América – o triunfo da liberdade humana sob D-s” (4).

Se Hakhel é renovação nacional, o mandamento que cada um deve participar na escrita de um novo Sefer Torá significa a renovação pessoal. Foi a maneira de Moisés dizer a todas as gerações futuras: Não é suficiente você dizer: eu recebi a Torá dos meus pais (ou avós ou bisavós). Você tem que pegá-la e renová-la em cada geração.

Uma das características mais marcantes da vida judaica é que – de Israel a Palo Alto – os judeus estão entre os usuários mais entusiastas do mundo da tecnologia da informação e têm contribuído de forma desproporcional ao seu desenvolvimento (Google, Facebook, Waze). Mas nós ainda escrevemos a Torá exatamente como ela foi feita há milhares de anos – à mão, com uma pena, em um rolo de pergaminho. Esse não é um paradoxo; é uma verdade profunda. As pessoas que assim carregam seu passado com elas, pode construir o futuro sem medo.

A renovação é um dos mais difíceis empreendimentos humanos. Alguns anos atrás eu estava sentado com o homem que estava prestes a se tornar primeiro-ministro da Grã-Bretanha. No decurso da nossa conversa, ele disse: “O que eu mais rezo é que quando chegarmos lá (ele queria dizer, 10 Downing Street – residência do primeiro-ministro britânico), eu nunca esqueça por que eu queria chegar lá”. Eu suspeito que ele tinha em mente as palavras famosas de Harold Macmillan, primeiro-ministro britânico entre 1957 e 1963, que, quando perguntado o que ele mais temia na política, respondeu: “Acontecimentos, meu querido, acontecimentos”.

Coisas acontecem. Somos tomados por ventos que passam, somos apanhados em problemas que criamos, e que nos colocam à deriva. Quando isso acontece, seja para indivíduos, instituições ou nações, nós envelhecemos. Esquecemos quem somos e por quê. Finalmente somos ultrapassados por pessoas (ou organizações ou culturas) que são mais jovens, encontram-se mais empolgadas ou mais motivadas do que nós.

A única maneira de permanecer jovem, empolgado e motivado é através da renovação periódica, lembrando-nos de onde viemos, para onde vamos, e por quê. Com quais ideais estamos comprometidos? Que “viagem” somos chamados a continuar? De que história somos uma parte?

Quão preciso o momento, portanto, e quão bonito o fato que, no momento em que o maior dos profetas enfrentou sua própria mortalidade, D-s daria a ele, e a nós, o segredo da imortalidade – não apenas no céu, mas aqui na terra. Pois quando mantemos os termos do pacto e o transformamos em novo outra vez em nossas vidas, vivemos naqueles que virão depois de nós, seja através de nossos filhos ou nossos discípulos ou aqueles que temos ajudado ou influenciado. Nós “renovamos os nossos dias como dantes”. Moisés morreu, mas o que ele ensinou e o que ele buscou continua vivo.

 

NOTAS:
1- Há uma lição importante aqui: é a oração que fazemos para os outros e outros fazem por nós que são respondidas; nem sempre aquelas que oramos por nós mesmos. É por isso que quando rezamos pela cura dos enfermos ou o conforto dos enlutados, o fazemos especificamente “no meio dos outros” que estão doentes ou são viúvos. Como Judá Halevi apontou em O Kuzari, os interesses dos indivíduos podem entrar em conflito uns com os outros, razão pela qual oramos em comunidade, visando o bem coletivo.
2- Este é o entendimento de Radak e Ralbag sobre o evento. Abarbanel acha difícil acreditar que não haviam outras cópias da Torá preservadas, mesmo durante os períodos de idólatra da história da nação, e sugere que o que foi descoberto fechado no templo era a própria Torá de Moisés, escrita pela sua mão.
3- Veja Jeremias 31.
4- Documentos públicos dos presidentes dos Estados Unidos, Ronald Reagan, 1987,1040-43.

 

Texto original: “TO RENEW OUR DAYS” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

PARASHIOT mais recentes

PARASHIOT MAIS RECENTES

METSORA

Existe algo como Lashon Tov? Os Sábios entenderam tsara’at, o tema da parashá desta semana, não como uma doença, mas com...

Leia mais →

TAZRIA

Otelo, WikiLeaks e paredes mofadas Foi a Septuaginta, a antiga tradução grega da Bíblia Hebraica, que traduziu tsara’at,...

Leia mais →

SHEMINI

Espontaneidade: Boa ou Ruim? Shemini conta a trágica história de como a grande inauguração do Tabernáculo, um dia sobre o qua...

Leia mais →

HORÁRIOS DAS REZAS