VAYERA

Posted on novembro 8, 2022

VAYERA

Para Santificar O Espaço Entre Nós

Há um mistério no coração da história bíblica de Avraham, e tem imensas implicações para nossa compreensão do judaísmo.

Quem foi Avraham e por que ele foi escolhido? A resposta está longe de ser óbvia. Em nenhum lugar ele é descrito, como Noach, como “um homem justo, perfeito em suas gerações”. (Gn 6:9) Não temos nenhum retrato dele, como o jovem Moisés, intervindo fisicamente em conflitos como protesto contra a injustiça. Ele não era um soldado como David, ou um visionário como Isaías. Em apenas um lugar, perto do início de nossa parashá, a Torá diz por que D-s o escolheu:

Então o Senhor disse: “Devo esconder de Avraham o que estou prestes a fazer? Avraham está prestes a se tornar uma grande e poderosa nação, e por meio dele todas as nações da terra serão abençoadas.  Pois eu o escolhi para que dirija a seus filhos e a sua casa depois dele, para que guardem o caminho do Senhor, fazendo o que é certo e justo, para que o Senhor realize a Avraham o que disse para ele”. (Gn 18:17-9)

Avraham foi escolhido para ser pai. De fato, o nome original de Avraham, Av ram, significa “pai poderoso”, e seu nome ampliado, Avraham, significa “pai de muitas nações”.

Assim que percebemos isso, lembramos que a primeira pessoa na história a receber um nome próprio foi Chava, Eva, porque, disse Adam, “ela é a mãe de toda a vida”. (Gn 3:20) Note que a maternidade é chamada à atenção na Torá muito antes da paternidade (vinte gerações para ser preciso, dez de Adam a Noach, e dez de Noach a Avraham). A razão é que a maternidade é um fenômeno biológico. É comum a quase todas as formas de vida avançada. A paternidade é um fenômeno cultural. Há pouco na biologia que apoie a união de pares, a monogamia e a fidelidade no casamento, e menos ainda que conecte os machos com seus descendentes. É por isso que a paternidade sempre precisa de reforço do código moral vigente em uma sociedade. Sem isso, as famílias se fragmentam muito rapidamente, com o fardo sendo predominantemente suportado pela mãe abandonada.

Essa ênfase na paternidade – maternidade no caso de Eva, paternidade no caso de Avraham – é absolutamente central para a espiritualidade judaica, porque o que o monoteísmo abraâmico trouxe ao mundo não foi apenas uma redução matemática do número de deuses de muitos para um. O D-s de Israel não é primariamente o D-s dos cientistas que colocaram o universo em movimento com o Big Bang. Não é o D-s dos filósofos, cujo ser necessário sustenta nossa contingência. Tampouco é o D-s dos místicos, o Ein Sof, o Infinito que emoldura nossa finitude. O D-s de Israel é o D-s que nos ama e cuida de nós como um pai ama e cuida de um filho.

Às vezes D-s é descrito como nosso pai:

“Não temos todos um Pai? Não foi um D-s que nos criou?” (Malaquias 2:10)

Às vezes, especialmente nos capítulos finais do livro de Isaías, D-s é descrito como uma mãe: “Como alguém a quem sua mãe consola, assim eu te consolarei”. (Is. 66:13) “Pode uma mulher esquecer-se de seu filho que amamenta e não ter compaixão do filho de seu ventre? Mesmo estes podem esquecer, mas Eu não vou esquecer você.” (Is. 49:15) O atributo primário de D-s, especialmente sempre que o nome de quatro letras Hashem é usado, é compaixão, a palavra hebraica para a qual, rachamim, vem da palavra rechem, que significa “um ventre”.

Assim, nosso relacionamento com D-s está profundamente ligado ao nosso relacionamento com nossos pais, e nossa compreensão de D-s se aprofunda se tivermos a bênção dos filhos (adoro o comentário de uma jovem mãe judia americana: “Agora que me tornei mãe, acho que posso me relacionar muito melhor com D-s: agora sei como é criar algo que você não pode controlar”).

Tudo isso torna a história de Avraham muito difícil de entender por duas razões. A primeira é que Avraham foi o filho ordenado por D-s a deixar seu pai:

“Vai – da tua terra, da tua terra natal e da casa do teu pai…” (Gn 12:1)

A segunda é que Avraham foi o pai ordenado por D-s para sacrificar seu filho:

Então D-s disse: “Tome seu filho, seu único filho, aquele a quem você ama – Isaac – e vá para a terra de Moriá. Ali, ofereça-o em holocausto sobre um dos montes, aquele que eu lhe mostrarei”. (Gn 22:2)

Como isso pode fazer sentido? Já é bastante difícil entender D-s ordenando essas coisas a qualquer um. Quanto mais porque D-s escolheu Avraham especificamente para se tornar um modelo de relacionamento pais-filhos, pai-filho.

A Torá está nos ensinando algo fundamental e contra-intuitivo. Tem que haver separação antes que possa haver conexão. Temos que ter espaço para sermos nós mesmos se quisermos ser bons filhos para nossos pais, e temos que permitir que nossos filhos sejam eles mesmos se quisermos ser bons pais.

Argumentei na semana passada que Avraham estava de fato continuando uma jornada que seu pai Terach já havia começado. No entanto, é preciso certa maturidade de nossa parte para percebermos isso, pois nossa primeira leitura da narrativa parece sugerir que Avraham estava prestes a iniciar uma jornada completamente nova. Avraham, na famosa tradição midráshica, foi o iconoclasta que deu um martelo aos ídolos de seu pai. Só mais tarde na vida compreendemos plenamente que, apesar de nossas rebeliões adolescentes, há mais de nossos pais em nós do que pensávamos quando éramos jovens. Mas antes que possamos apreciar isso, tem que haver um ato de separação.

Da mesma forma no caso da ligação de Isaac. Há muito defendo que o ponto da história não é que Avraham amou a D-s o suficiente para sacrificar seu filho, mas que D-s estava ensinando a Avraham que não somos donos de nossos filhos, por mais que os amemos. A primeira criança humana foi chamada Caim porque sua mãe Eva disse: “Com a ajuda do Senhor, adquiri [kaniti] um homem”. (Gn 4:1) Quando os pais pensam que são donos de seus filhos, o resultado geralmente é trágico.

Primeiro separe, depois junte-se. Primeiro individualize, depois relacione. Esse é um dos fundamentos da espiritualidade judaica. Nós não somos D-s. D-s não é nós. É a clareza dos limites entre o céu e a terra que nos permite ter um relacionamento saudável com D-s. É verdade que o misticismo judaico fala sobre bitul ha-yesh, a completa anulação do eu na luz infinita e abrangente de D-s, mas essa não é a corrente normativa da espiritualidade judaica. O que é tão impressionante sobre os heróis e heroínas da Bíblia hebraica é que quando eles falam com D-s, eles permanecem eles mesmos. D-s não nos domina. Esse é o princípio que os cabalistas chamavam de tzimtzum, a autolimitação de D-s. D-s abre espaço para que sejamos nós mesmos.

Avraham teve que se separar de seu pai antes que ele, e nós, pudéssemos entender o quanto ele devia a seu pai. Ele teve que se separar de seu filho para que Isaac pudesse ser Isaac e não simplesmente um clone de Avraham. Rabi Menahem Mendel, o Rebe de Kotzk, colocou isso de forma inimitável. Ele disse:

“Se eu sou eu porque sou eu, e você é você porque você é você, então eu sou eu e você é você. Mas se eu sou eu porque você é você, e você é você porque eu sou eu, então eu não sou eu e você não é você!”

D-s nos ama como um pai ama um filho – mas um pai que realmente ama seu filho abre espaço para o filho desenvolver sua própria identidade. É o espaço que criamos um para o outro que permite que o amor seja como a luz do sol para uma flor, não como uma árvore para as plantas que crescem abaixo. O papel do amor, humano e divino, é, na bela frase do poeta irlandês John O’Donohue, “abençoar o espaço entre nós”.

 

Texto original “To Bless the Space to Between Us” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l

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