BAMIDBAR

Posted on junho 7, 2016

BAMIDBAR

O Som do Silêncio

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Bamidbar é geralmente lido no Shabat antes de Shavuot. Sendo assim os sábios ligam os dois. Shavuot é o momento da entrega da Torá. Bamidbar significa, “no deserto”. Qual é então a conexão entre o deserto e a Torá, o deserto e a palavra de D-s?
Os sábios deram várias interpretações. De acordo com o Mechilta, a Torá foi dada ao público, de forma aberta, e em um lugar que é de ninguém, porque se tivesse sido dada na terra de Israel, os judeus teriam dito às nações do mundo, “Vocês não têm nenhuma parte nela”. Ao invés disso, quem quiser vir e aceitá-la, que venha e a aceite (1).
Outra explicação: se a Torá tivesse sido dada em Israel, as nações do mundo teriam uma desculpa para não aceitá-la. Isso segue a tradição rabínica que antes de D-s dar a Torá aos filhos de Israel, Ele a ofereceu a todas as outras nações e cada uma encontrou uma razão para declinar (2). Ainda outra: assim como o acesso ao deserto é gratuito – não custa nada para entrar – assim também a Torá é gratuita. É um presente de D-s para nós (3).

Mas há outra razão, mais espiritual. O deserto é um lugar de silêncio. Não há nada visual para distraí-lo, e não há ruído ambiente para abafar o som. Certamente, quando os israelitas receberam a Torá, houve trovões e relâmpagos e o som de um shofar. A terra sentiu como se estivesse tremendo em suas fundações. Mas, mais adiante no tempo, quando o profeta Elias esteve na mesma montanha após seu confronto com os profetas de Baal, ele encontrou D-s não no turbilhão ou no fogo ou no terremoto, mas no Kol demamá daká, a voz mansa e delicada, literalmente “o som de um fino silêncio” (4). Eu defino isso como o som que você só pode escutar se estiver ouvindo. No silêncio do midbar, o deserto, você pode ouvir o medaber, o orador, e o medubar, o que é falado. Para ouvir a voz de D-s você precisa de um silêncio de escuta na alma.

Muitos anos atrás a televisão britânica produziu uma série de documentários, The Long Search, sobre as grandes religiões do mundo (5). Quando a busca chegou ao judaísmo, o apresentador Ronald Eyre pareceu surpreso com a confusão extremamente barulhenta, especialmente nas vozes ruidosas que discutiam no Bet Midrash, a casa de estudo. Comentando sobre isso para Elie Wiesel, ele perguntou: “Existe tal coisa como um silêncio no judaísmo?”

Wiesel respondeu: “O judaísmo está cheio de silêncios… mas nós não falamos sobre eles”.

O judaísmo é uma cultura muito verbal, uma religião de palavras sagradas. Através de palavras, D-s criou o universo: “E disse D-s: ‘Haja… e houve’.” De acordo com o Targum (tradutor Onkelos), é a nossa capacidade de falar que nos torna humanos. Ele traduz a frase, “e o homem se tornou uma alma vivente” (Gen. 2:7) como “e o homem passou a ser uma alma falante”. Palavras criam. Palavras comunicam. Nossas relações são moldadas, para o bem ou para o mal, pela linguagem. Muito do Judaísmo é sobre o poder das palavras para criar ou quebrar mundos.

Assim, silêncio no Tanach muitas vezes tem uma conotação negativa. “Aarão ficou em silêncio”, diz a Torá, após a morte de seus dois filhos Nadav e Avihu (Lev. 10:3). “Os mortos não louvam você”, diz o Salmo 115, “nem os que descem ao silêncio [da sepultura]”. Quando os amigos de Jó vieram consolá-lo após a perda de seus filhos e outras aflições, “Então sentaram-se com ele na terra por sete dias e sete noites, mas ninguém dirigiu uma palavra a ele, pois viram que a dor era muito grande” (Jó 2:13).

Mas nem todo silêncio é triste. Os Salmos nos dizem que “para Ti, o silêncio é louvor” (Sal. 65:2). Se verdadeiramente reverenciamos a grandeza de D-s, a vastidão do universo e a medida quase infinita de tempo, nossas emoções mais profundas irão realmente penetrar demasiadamente fundo para podermos expressá-las. Vamos experimentar a comunhão silenciosa.

Os sábios valorizaram o silêncio. Eles o chamam de “uma cerca para a sabedoria” (6). Se as palavras valem uma moeda, o silêncio vale duas (7). R. Shimon ben Gamliel disse: “Todos os meus dias eu cresci entre os sábios, e nada encontrei de melhor do que o silêncio” (8).

O serviço dos sacerdotes do Templo era acompanhado pelo silêncio. Os levitas cantavam no pátio, mas os sacerdotes – ao contrário dos seus pares de outras religiões antigas – não cantavam ou falavam, oferecendo os sacrifícios. Um estudioso (9), em conformidade com o que foi dito, falou sobre “o silêncio do santuário”. O Zohar (2a) fala do silêncio como o meio em que tanto o Santuário acima e o Santuário abaixo são feitos.

Havia judeus que cultivavam o silêncio como uma disciplina espiritual. Os chassidim de Bratslav meditavam nos campos. Há judeus que praticam dibbur taanit, um “jejum de palavras”. A nossa oração mais profunda, a recitação particular da Amidá, é chamada tefilá ser-lachash, a “oração silenciosa”. Baseia-se no precedente de Haná, quando rezou para ter um filho. “Ela falou em seu coração. Seus lábios se moviam, mas sua voz não foi ouvida” (1 Sam. 1:13).

D-s ouve nosso grito silencioso. No conto angustiante de como Sarah disse a Abraão para afastar Hagar e seu filho, a Torá nos diz que quando a água acabou e o jovem Ishmael estava a ponto de morrer, Hagar chorou, mas D-s ouviu “a voz da criança” (Gen. 21:16-17). Anteriormente, quando os anjos vieram para visitar Abraão e lhe disseram que Sarah teria um filho, Sarah riu interiormente, isto é, silenciosamente, mas ela foi ouvida por D-s (Gen. 18:12-13). D-s ouve nossos pensamentos, mesmo quando eles não são expressos na fala.

O silêncio que importa no judaísmo é, portanto, um silêncio de escuta – e a escuta é a arte religiosa suprema. Ouvir significa abrir espaço para os outros falarem e serem ouvidos. Como eu indico no meu comentário ao Sidur, não há nenhuma palavra em Inglês que remotamente se assemelhe ao verbo hebraico sh-m-a em sua ampla gama de sentidos: escutar, ouvir, prestar atenção, compreender, interiorizar e responder.

Esse foi um dos elementos-chave na aliança do Sinai, quando os israelitas, já tendo dito duas vezes, “Tudo o que D-s disser, vamos fazer”, voltou a dizer: “Tudo o que D-s disser, faremos e ouviremos [ve-nishmá]” (Ex. 24:7). É o nishma – escuta, audição, atender, responder – que é a chave do ato religioso.

Assim, o judaísmo não é apenas uma religião de fazer e de falar; ele também é uma religião de escutar. A fé é a capacidade de ouvir a música sob o ruído. Há a música silenciosa das esferas, sobre os quais o Salmo 19 fala:

“Os céus declaram a glória de D-s
O firmamento anuncia a obra das Suas mãos.
Dia-a-dia eles derramam seu discurso,
Noite após noite eles comunicam conhecimento.
Não há fala, não há palavras,
A sua voz não é ouvida.
Ainda assim sua música é transportada por toda a terra”.

Há a voz da história que foi ouvida pelos profetas. E há a voz dos mandamentos do Sinai, que continua a nos falar através do abismo de tempo. Às vezes penso que as pessoas na era moderna têm encontrado dificuldade com o conceito de “Torá do céu”, não por causa de alguma nova descoberta arqueológica, mas porque perdemos o hábito de ouvir o som da transcendência, uma voz além do meramente humano.

É fascinante que, apesar de sua relação muitas vezes danificada com o judaísmo, Sigmund Freud criou na psicanálise uma forma profundamente judaica de cura. Ele próprio chamou de “cura através da fala”, mas na verdade é uma cura de escuta. Quase todas as formas eficazes de psicoterapia envolvem a escuta profunda.

Existe escuta suficiente no mundo judaico de hoje? Será que no casamento realmente ouvimos nossos cônjuges? Será que nós como pais realmente ouvimos nossos filhos? Será que nós como líderes ouvimos os medos não ditos daqueles que procuramos liderar? Será que interiorizamos o sentimento de mágoa das pessoas que se sentem excluídas da comunidade? Podemos realmente afirmar estar ouvindo a voz de D-s se falhamos em ouvir as vozes de nossos semelhantes?

Em seu poema, “Em memória de W B Yeats”, W H Auden escreveu:

“Nos desertos do coração
Deixe a fonte de cura começar”.

De vez em quando nós precisamos dar um passo atrás para nos afastar do barulho e da agitação do mundo social e criar em nossos corações o silêncio do deserto, onde, nesse silêncio, possamos ouvir o Kol demamá daká, a voz mansa e delicada de D-s, nos dizendo que somos amados, estamos sendo ouvidos, estamos sendo abraçados pelos braços eternos de D-s, não estamos sozinhos.

 

NOTAS:
[1] Mechilta, Yitrô, Bachodesh, 1.
[2] Ibid., 5.
[3] Ibid.
[4] 1 Kings 19:9-12.
[5] TV BBC, inicialmente veiculado em 1977.
[6] Avot 3:13.
[7] Meguilá 18a.
[8] Avot 1:17
[9] Israel Knohl

 

Texto original: “THE SOUND OF SILENCE” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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