BEHAR

Posted on maio 24, 2016

BEHAR

Sentimento de Família

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Argumentei em Covenant and Conversation sobre Kedoshim que o Judaísmo é mais do que uma etnia. É um chamado à santidade. Em certo sentido, porém, há uma importante dimensão étnica no judaísmo.

Isso é melhor captado na piada de 1980 sobre uma campanha de publicidade em Nova York. Por toda a cidade havia cartazes gigantes com o slogan: “Você tem um amigo no Chase Manhattan Bank”. Debaixo de um desses, um israelense tinha rabiscado as palavras: “Mas no Bank Leumi você tem mishpachá (família)”. Os judeus são, e estão conscientes disso, uma única família.

Isso é particularmente evidente na parashá desta semana. Repetidamente lemos sobre a legislação social redigida na linguagem de família: “Quando você fizer uma compra ou uma venda ao seu companheiro, que ninguém engane seu irmão” (Lev. 25:14). “Se o seu irmão empobrecer e vender seus bens, seu parente mais próximo resgatará o que seu irmão vendeu” (Lev. 25:25). “Se o seu irmão empobreceu e se endividou com você, você deve apoiá-lo; ele deve viver com você como um estrangeiro residente. Não cobre juros ou tenha lucro com ele, mas tema o seu D-s e deixe que o seu irmão viva com você” (25:35-36). “Se o seu irmão empobrecer e for vendido à você, não permita que ele trabalhe como um escravo” (25:39).

“Seu irmão” nesses versos não é literal. Às vezes isso significa “seu parente”, mas principalmente significa “o seu irmão”. Essa é uma maneira distinta de pensar sobre a sociedade e as nossas obrigações para com os outros. Os judeus não são apenas cidadãos da mesma nação ou seguidores da mesma fé. Somos membros da mesma família. Nós somos, biologicamente ou por escolha, filhos de Abraão e Sarah. Na sua maior parte, compartilhamos a mesma história. Nos festejos, nós revivemos as mesmas memórias. Fomos forjados nos mesmos testes de sofrimento. Nós somos mais do que amigos. Somos mishpachá, família.

O conceito de família é absolutamente fundamental para o judaísmo. Considere o livro de Gênesis, ponto de partida da Torá. Não é primariamente sobre teologia, doutrina, dogma, nem uma polêmica contra a idolatria. Trata-se de famílias: maridos e esposas, pais e filhos, irmãos e irmãs.

Em momentos-chave na Torá, o próprio D-s define seu relacionamento com os israelitas em termos de família. Ele diz a Moisés para dizer ao faraó em seu nome: “Meu filho, meu primogênito, Israel” (Ex. 4:22). Quando Moisés quer explicar aos israelitas por que eles têm a obrigação de serem santos, ele diz: “Vocês são filhos do Senhor teu D-s” (Deut. 14:1). Se D-s é nosso pai, então somos todos irmãos e irmãs. Estamos ligados por laços que vão para o coração de quem somos.

Os profetas continuaram a metáfora. Há uma bela passagem em Oséias, na qual o profeta descreve D-s como um pai ensinando a uma criança como dar seus primeiros passos vacilantes: “Quando Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei-o meu filho… Fui eu quem ensinei Efraim a andar, tomando-os pelos braços. Para eles eu era como aquele que levanta uma criança e tira o jugo do seu pescoço e me inclino para alimentá-los” (Oséias 11:1-4).

A mesma imagem é mantida no judaísmo rabínico. Em uma das frases mais famosas da oração, Rabi Akiva usou as palavras Avinu Malkenu, “Nosso Pai, nosso Rei”. Essa é uma expressão precisa e deliberada. D-s é realmente nosso soberano, nosso legislador e nosso juiz, mas antes disso, ele não é qualquer dessas especificações, ele é nosso Pai e nós somos seus filhos. É por isso que acreditamos que a compaixão Divina vai sempre se sobrepor à estrita justiça.

Esse conceito de judeus como uma grande família é fortemente expresso nas Leis de Caridade de Maimônides:

O povo judeu inteiro e todos aqueles que a ele se ligam são como irmãos, como [Deut. 14:1] afirma: “Vocês são filhos do Senhor teu D-s”. E se um irmão não vai mostrar misericórdia para com um irmão, quem irá mostrar misericórdia para com eles? Para quem os pobres de Israel levantam seus olhos? Para os gentios que os odeiam e os perseguem? Seus olhos estão voltados somente para os seus irmãos (1). Esse sentimento de parentesco, fraternidade e de vínculo familiar, é o cerne da ideia de Kol Yisrael arevin zê bazê, “Todos os judeus são responsáveis uns pelos outros”. Ou, como Rabi Shimon bar Yohai coloca: “Quando um judeu é ferido, todos os judeus sentem a dor” (2).

Por que o judaísmo é construído sobre esse modelo da família? Em parte para nos dizer que D-s não escolheu uma elite de justos ou uma seita onde seus membros pensam igual. Ele escolheu uma família – descendentes de Abraão e Sarah – ampliada ao longo do tempo. A família é o mais poderoso veículo de continuidade; e o tipo de mudanças esperadas que os judeus fizessem no mundo, não poderia ser alcançado em uma única geração. Daí a importância da família como um lugar de educação (“Você deve ensinar essas coisas repetidamente para seus filhos…”) e divulgar a história, especialmente em Pessach através do serviço do seder.

Outra razão é que o sentimento de família é o vínculo moral mais primitivo e poderoso. O cientista J. B. S. Haldane disse uma frase que ficou famosa, quando perguntado se ele pularia num rio, arriscando assim a sua vida, para salvar seu irmão de afogamento: “Não, mas gostaria de fazê-lo para salvar dois irmãos ou oito primos”. A questão que ele estava levantando era que nós compartilhamos 50 por cento dos nossos genes com os nossos irmãos, e um oitavo com nossos primos. Correr um risco para salvá-los é uma forma de garantir que os nossos genes serão passados para a próxima geração. Esse princípio, conhecido como “seleção de parentesco”, é a forma mais básica de altruísmo humano. É onde o sentido moral nasce.

Essa é uma visão fundamental, não só da biologia, mas também da teoria política. “Estar ligado à subdivisão, amar o pequeno pelotão ao qual pertencemos na sociedade, é o primeiro princípio do afeto público. Ele é o primeiro elo na série pela qual avançamos para um amor pelo nosso país e para a humanidade” (3). Da mesma forma Alexis de Tocqueville disse: “Enquanto o sentimento de família foi mantido vivo, o adversário da opressão nunca ficou sozinho” (4).

Famílias fortes são essenciais para as sociedades livres. Onde as famílias são fortes, um sentimento de altruísmo existe e pode ser estendido para fora: da família aos amigos, para os vizinhos, para a comunidade, e de lá para a nação como um todo.

Foi o sentido de família que manteve os judeus ligados numa teia de obrigação mútua, apesar do fato de eles estarem espalhados pelo mundo. Será que ainda existe? Às vezes, as divisões no mundo judaico vão tão fundo, e os insultos lançados por um grupo contra outro são tão brutais que poderíamos quase ser persuadidos a crer que a irmandade se desfez. Na década de 1950, Martin Buber expressou a crença de que o povo judeu no sentido tradicional já não existia. Knesset Israel, o povo da aliança como uma entidade única diante de D-s, não existia mais. As divisões entre judeus, religiosos e seculares, ortodoxos e não ortodoxos, sionistas e não sionistas, haviam, pensou ele, fragmentado as pessoas para além da esperança de reparação.

No entanto, essa conclusão é prematura precisamente pela razão que faz da família um vínculo tão básico. Discuta com o seu amigo e amanhã ele não será mais seu amigo, mas discuta com o seu irmão e amanhã ele ainda é seu irmão. O livro de Gênesis é cheio de rivalidades, mas nem todas elas terminam da mesma maneira. A história de Caim e Abel termina com Abel morto. A história de Isaac e Ismael termina com a união junto ao túmulo de Abraão. A história de Esaú e Jacob chega a um clímax quando, após uma longa separação, eles se encontram, se abraçam e seguem caminhos diferentes. A história de José e seus irmãos começa com animosidade, mas termina com o perdão e a reconciliação. Mesmo as famílias mais disfuncionais podem eventualmente se juntar.

O povo judeu continua a ser uma família, muitas vezes dividida, sempre polêmica, no entanto, ligada em uma união comum do destino. Como nossa parashá nos lembra, a pessoa que caiu é nosso irmão ou irmã, e nossa mão deve ser aquela que a ajuda a levantar novamente.

 

NOTAS:
[1] Mishnê Torá, Leis de presentes para o pobres, 10:2.
[2] Mechilta de Rabi Shimon bar Yohai para Ex. 19:6.
[3] Edmund Burke (1729–1797). Reflections on the French Revolution. The Harvard Classics. 1909–14.
[4] A democracia na America, cap. XVII: Causa principal que tende a manter a democracia republicana nos EUA.

 

Texto original: “FAMILY FEELING” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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