VAIECHI

Posted on dezembro 21, 2015

VAIECHI

Não Predizer o Futuro

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Jacob estava em seu leito de morte. Ele convocou seus filhos. Ele queria abençoá-los antes de morrer. Mas o texto começa com uma estranha semi-repetição:
“Reúnam-se ao meu redor e assim eu posso dizer a vocês o que vai acontecer nos próximos dias. Juntem-se e ouçam, filhos de Jacob; ouçam seu pai Israel” (Gen. 49:1-2).
Isso parece estar dizendo a mesma coisa duas vezes, com uma diferença. Na primeira frase, há uma referência para “o que vai acontecer com vocês nos dias por vir” (literalmente “no final dos dias”). Isso está ausente na segunda frase.
Rashi, seguindo o Talmud (1), diz que “Jacob quis revelar o que iria acontecer no futuro, mas a presença Divina foi removida dele”. Ele tentou prever o futuro, mas descobriu que não podia.
Isso não é um pequeno detalhe. É uma característica fundamental da espiritualidade judaica. Acreditamos que não podemos prever o futuro quando se trata de seres humanos. Fazemos o futuro por nossas escolhas. O roteiro ainda não foi escrito. O futuro está radicalmente aberto.
Essa era uma grande diferença entre Israel da antiguidade e a antiga Grécia. Os gregos acreditavam no destino, moira, mesmo o destino cego, ananke. Quando o oráculo de Delfos disse a Laio que ele teria um filho que iria matá-lo, ele tomou todas as precauções para se certificar de que não aconteceria. Quando a criança nasceu, Laio pregou-o pelos pés a uma rocha e deixou-o lá para morrer. Um pastor que por ali passava, encontrou-o e o salvou, e ele acabou por ser criado pelo rei e rainha de Corinto. Porque seus pés estavam permanentemente disformes, ele veio a ser conhecido como Édipo (aquele que tinha os “pés inchados”).
O resto da história é bem conhecido. Tudo o que o oráculo anteviu aconteceu, e todo ato destinado a evitar o acontecimento, na realidade, ajudou a acontecer. Uma vez que o oráculo falou e que o destino foi selado, todas as tentativas de evitá-lo são em vão. Esse conjunto de ideias se encontra no coração de uma das grandes contribuições da civilização grega: a tragédia.
Surpreendentemente, devido a muitos séculos de sofrimento judaico, o hebraico bíblico não tem uma palavra para ‘tragédia’. A palavra ason significa “um acidente, um desastre, uma calamidade”, mas não tragédia no sentido clássico. A tragédia é um drama com um resultado triste, envolvendo um herói destinado a experimentar decadência ou destruição através de um personagem ou um conflito com uma força avassaladora, como o destino. O judaísmo não tem uma palavra para isso porque não acredita em destino como algo cego, inevitável e inexorável. Nós somos livres. Podemos escolher. Como Isaac Bashevis Singer disse espirituosamente: “Nós temos de ser livres: não temos escolha!”
Raramente isso é mais poderosamente afirmado do que na oração Unetanê tokef que dizemos em Rosh Hashaná e Yom Kipur. Mesmo depois de ter dito que “Em Rosh Hashaná é escrito e em Yom Kipur é selado… quem vai viver e quem vai morrer”, nós ainda continuamos, dizendo: “Mas teshuvá, oração e caridade evitam o mau decreto”. Não há nenhuma sentença contra a qual não possamos apelar, nenhum veredicto que não possamos mitigar, mostrando que nos arrependemos e mudamos.
Há um exemplo clássico disso no Tanach. “Naqueles dias Ezequiel ficou doente e estava perto da morte. O profeta Isaías, filho de Amós foi até ele e disse: ‘Isto é o que o Senhor diz: Ponha a sua casa em ordem, porque você vai morrer; você não vai se recuperar’. Ezequiel virou o rosto para a parede e orou ao Senhor, ‘Lembre-se, Senhor, como tenho andado diante de Você com fidelidade e com devoção sincera e tenho feito o que é bom aos seus olhos’. E Ezequiel chorou amargamente. Antes de Isaías deixar o pátio intermediário, a palavra do Senhor veio a ele: ‘Volte e diga a Ezequiel, líder do meu povo: Assim diz o Senhor, D-s de teu pai David: Ouvi a tua oração e vi as tuas lágrimas; Vou te curar’” (2 Reis 20:1-5; Isaías 38:1-5).
O profeta Isaías havia dito ao rei Ezequiel que ele não iria se recuperar, mas ele se recuperou. Ele viveu por mais quinze anos. D-s ouviu sua oração e concedeu-lhe vida. Daí o Talmud infere: “Mesmo que uma espada afiada repouse sobre o seu pescoço, você não deve desistir da oração” (2). Oramos por um bom destino, mas não nos conciliamos com o fatalismo.
Consequentemente, há uma diferença fundamental entre uma profecia e uma previsão. Se uma previsão se torna realidade, ela foi bem sucedida. Se uma profecia torna-se realidade, ela falhou, pois um profeta não oferece uma previsão, mas um aviso. Ele ou ela não diz simplesmente: “Isso vai acontecer”, mas sim “Isso vai acontecer se você não mudar”. O profeta fala à liberdade humana, não para a inevitabilidade do destino.
Certa vez eu estava presente em uma reunião onde Bernard Lewis, o grande estudioso do Islã, foi convidado a prever o resultado de uma determinada intervenção política externa americana. Ele deu uma resposta magnífica. “Eu sou um historiador, então eu só faço previsões sobre o passado. E mais, eu sou um historiador aposentado, por isso mesmo o meu passado é coisa do passado”. Essa foi uma resposta profundamente judaica.
No século XXI nós sabemos muito, em níveis macro e micro. Nós olhamos para cima e vemos um universo de cem bilhões de galáxias, cada uma delas de centenas de bilhões de estrelas. Nós olhamos para baixo e vemos um corpo humano contendo uma centena de trilhões de células, cada uma delas com uma cópia dupla do genoma humano, 3,1 bilhões de letras, o suficiente se transcritos para encher uma biblioteca de 5.000 livros. Mas ainda há uma coisa que nós não conhecemos e nunca vamos conhecer: O que o amanhã trará. O passado, disse LP Hartley, é um país estrangeiro. Mas o futuro é um país desconhecido. É por isso que as previsões tão frequentemente falham.
Essa é a diferença essencial entre a natureza e a natureza humana. Os antigos mesopotâmios podiam fazer previsões precisas sobre o movimento dos planetas, mas ainda hoje, apesar do escaneamento do cérebro e a neurociência, ainda não somos capazes de prever o que as pessoas vão fazer. Muitas vezes, elas nos pegam de surpresa.
A razão é que somos livres. Nós escolhemos, nós cometemos erros, nós aprendemos, nós mudamos, nós crescemos. O aluno mal sucedido na escola se torna o vencedor de um Prêmio Nobel. O líder que desapontou, de repente mostra coragem e sabedoria em uma crise. O empresário impulsionado pela recente informação sobre sua morte, decide dedicar o resto de sua vida a ajudar os pobres. Algumas das pessoas mais bem sucedidas que já conheci foram desencorajadas por seus professores na escola, que lhes disseram que nunca iriam alcançar nada na vida. Estamos constantemente desafiando as previsões. Isso é algo que a ciência ainda não explicou e talvez nunca irá explicar. Alguns acreditam que a liberdade é uma ilusão. Mas não é. É o que nos torna humanos.
Somos livres porque não somos apenas objetos. Somos sujeitos. Nós não respondemos apenas a eventos físicos, mas à maneira como percebemos esses eventos. Temos mentes, não apenas cérebros. Temos pensamentos, não apenas sensações. Nós reagimos, mas também podemos optar por não reagir. Há algo sobre nós que é irredutível ao material, à causas e efeitos físicos.
A forma como os nossos antepassados falavam sobre isso continua a ser verdadeira e profunda. Somos livres porque D-s é livre e Ele nos fez à Sua imagem. Isso é o que se entende pelas três palavras que D-s disse a Moisés na sarça ardente, quando ele perguntou a D-s pelo Seu nome. D-s respondeu: Ehiê asher Ehiê. Isso é muitas vezes traduzido como “Eu sou o que sou”, mas o que realmente significa é: “Eu vou ser quem e como eu escolher ser”. Eu sou o D-s da liberdade. Eu não posso ser previsível. Note que D-s diz isso no início da missão de Moisés para liderar o povo da escravidão para a liberdade. Ele queria que os israelitas se tornassem testemunhos vivos do poder da liberdade.
Não acredite que o futuro está escrito. Não está. Não há destino que não possamos mudar, nem previsão que não possamos desafiar. Nós não estamos predestinados ao fracasso; nem somos pré-ordenados para ter sucesso. Nós não prevemos o futuro, porque fazemos o futuro: pelas nossas escolhas, nossa força de vontade, nossa persistência e nossa determinação para a sobrevivência.
A prova é o próprio povo judeu. A primeira referência a Israel fora da Bíblia está gravada na Merneptah stele, inscrita em torno de 1225 AEC pelo faraó Merneptah IV, sucessor de Ramsés II. Lê-se ali: “Israel está desolada, sua semente não existe mais”. Foi, em suma, um obituário. O povo judeu tem sido humilhado muitas vezes por seus inimigos, mas continua, depois de quase quatro milênios, ainda jovem e forte.
É por isso que, quando Jacob quis dizer a seus filhos o que aconteceria com eles no futuro, o espírito Divino foi tirado dele. Nossos filhos continuam a nos surpreender, enquanto nós continuamos a surpreender os outros. Feitos à imagem de D-s, nós somos livres. Sustentados pelas bênçãos de D-s, podemos nos tornar maiores do que qualquer outra pessoa, até nós mesmos, poderia prever.

NOTAS:
(1) Rashi para Gen. 49:1; Pesachim 56a; Bereshit Rabá 99:5.
(2) Berachot 10a.

Texto original: “ON NOT PREDICTING THE FUTURE” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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