LECH LECHÁ

Posted on outubro 21, 2015

LECH LECHÁ

Jornada das Gerações

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Mark Twain disse o que se segue, de forma enérgica. “Quando eu era um menino de 14 anos, meu pai era tão ignorante que eu mal podia tê-lo ao meu redor. Mas quando cheguei a 21 anos, fiquei surpreso com o quanto aquele idoso tinha aprendido em sete anos”.
Seja certa ou errada a formulação de Freud sobre o complexo de Édipo, certamente existe uma verdade ali – o poder e a dor da adolescência é que procuramos nos definir de forma diferente deles, sermos seres individualizados, pessoas que não seriam como nossos pais. Quando éramos jovens eles eram a presença mantenedora em nossas vidas, a nossa segurança, nossa estabilidade, nosso porto seguro no mundo.
O primeiro e mais profundo terror que temos, quando ainda crianças muito pequenas, é a ansiedade de separação: a ausência, em especial, da mãe. Crianças pequenas brincam alegremente desde que a mãe ou o cuidador esteja à vista. A ausência dessa pessoa causa pânico. Nós somos jovens demais para nos aventurar no mundo por conta própria. É precisamente a presença estável e previsível dos pais em nossos primeiros anos que nos dá um sentido básico de confiança na vida.
Mas em seguida vem o momento em que nos aproximamos da idade adulta, quando temos de aprender a trilhar o nosso próprio caminho no mundo. Esses são os anos de procura e, em alguns casos, rebeldia. É isso que faz a fase da adolescência tão preocupante. A palavra hebraica para a juventude – da raiz n-a-r – tem as conotações de ‘despertar’ e ‘sacudir’. Começamos a nos definir com referência a nossos amigos, nossos grupos, ao invés de nossa família. Muitas vezes há uma tensão entre as gerações.
O teórico literário Harold Bloom escreveu dois livros fascinantes, A angústia da influência e Mapas de Leitura Equivocada. Em estilo freudiano, ele argumentou que fortes poetas abrem espaço para si mesmos, deliberadamente interpretando mal ou julgando erroneamente seus antecessores. Caso contrário – se você realmente tivesse admiração pelos grandes poetas que vieram antes de você – você estaria frustrado por uma sensação de que tudo o que poderia ser dito já foi dito, e melhor do que você poderia fazer. Criar o espaço que precisamos para sermos nós mesmos envolve muitas vezes uma relação conflituosa com aqueles que vieram antes de nós, e isso inclui nossos pais.
Uma das grandes descobertas que tende a vir com a idade é que nós começamos a perceber que depois de termos passado o que parece ter sido uma vida de fuga de nossos pais, vemos que nós nos tornamos muito parecidos com eles – e quanto mais longe nós nos distanciamos, mais parecidos nos tornamos. Daí a verdade na visão de Mark Twain. É preciso tempo e distanciamento para ver o quanto devemos a nossos pais e o quanto deles vive em nós.
A forma como a Torá traz isso em relação a Abraão (ou Abrão como ele era então chamado) é notável em sua sutileza. Lech Lechá, e de fato a história judaica, começa com as palavras: “D-s disse a Abraão: Sai da tua terra, do lugar onde nasceu e da casa de teu pai para uma terra que eu irei lhe mostrar” (Gen. 12:1). Esse é o começo mais ousado de qualquer história de uma vida na Bíblia hebraica. Parece vir do nada. A Torá não nos dá nenhum retrato da infância de Abraão, sua juventude, sua relação com os outros membros de sua família, como ele veio a se casar com Sarah, ou as qualidades de caráter que fez D-s destacá-lo para tornar-se o iniciador do que finalmente tornou-se a maior revolução na história religiosa da humanidade, o que é chamado hoje em dia monoteísmo abraâmico.
Foi esse silêncio bíblico que levou à tradição midráshica que quase todos nós aprendemos quando crianças; que Abraão quebrou os ídolos na casa de seu pai. Esse é Abraham: o revolucionário, o iconoclasta, o homem de novos começos que derrubou tudo o que seu pai representava. Esse é o Abraão de Freud, se você assim preferir.
Talvez apenas mais adultos é que somos capazes de voltar e ler a história de novo, para perceber o significado da passagem no final da parashá anterior. Diz o seguinte: “Terach tomou Abrão, seu filho, seu neto Lot, filho de Haran, e sua nora Sarai, mulher de seu filho Abrão, e juntos eles partiram de Ur dos caldeus, para ir para Canaã. Mas quando eles chegaram em Haran, estabeleceram-se lá” (Gen. 11:31).
Acontece que, em outras palavras, Abraão deixou a casa de seu pai muito depois de ter deixado a sua terra e o lugar onde nasceu. Seu local de nascimento estava em Ur, o que é hoje o sul do Iraque, mas ele só se separou de seu pai em Haran, que agora é o norte da Síria. Terach, pai de Abraão, o acompanhou pela primeira metade de sua jornada. Ele foi com seu filho pelo menos uma parte do caminho.
O que realmente aconteceu? Existem duas possibilidades. A primeira é que Abraão recebeu seu chamado em Ur. Seu pai Terach concordou então em ir com ele, com a intenção de acompanhá-lo para a terra de Canaã, embora ele não tenha completado a viagem, talvez por causa da idade. A segunda é que a chamada de D-s veio a Abraão em Haran, caso em que o seu pai já tinha começado a viagem por sua própria iniciativa, deixando Ur. De qualquer forma, a ruptura entre Abraão e seu pai era muito menos dramática do que pensamos inicialmente.
Eu argumentei em outro lugar (no meu novo livro, Não em Nome de D-s), que a narrativa bíblica é muito mais sutil do que usualmente imaginamos. É deliberadamente escrita para ser entendida em diferentes níveis, em diferentes fases de nosso crescimento moral. Há também uma narrativa superficial. Mas também há, muitas vezes, uma história mais profunda que só é percebida e entendida quando chegamos a um certo nível de maturidade (Eu chamo isso de contra narrativa oculta). Gênesis 11-12 é um exemplo clássico.
Quando somos jovens, ouvimos a encantadora história de Abraão – de fato fortalecedora – quebrando os ídolos de seu pai, com sua mensagem demostrando que uma criança pode às vezes estar certa e um pai errado, especialmente quando se trata de espiritualidade e fé. Somente muito mais tarde na vida é que vamos ouvir a verdade muito mais profunda – escondida sob o disfarce de uma genealogia simples no final da parashá anterior – que Abraão estava, na verdade, completando uma jornada que seu pai começou.
Há uma linha no livro de Josué (24:2) – que lemos como parte da Hagadá na noite do Seder – que diz “No passado, os seus antepassados viveram além do rio Eufrates, incluindo Terach, o pai de Abraão e de Nahor. Eles adoraram outros deuses”. Então, houve idolatria no histórico da família de Abraão. Mas Gênesis 11 diz que foi Terach que tomou Abraão, e não Abraão que tomou Terach, de Ur para ir para a terra de Canaã. Não houve ruptura imediata e radical entre pai e filho.
Na verdade, é difícil imaginar como poderia ter sido de outra forma. Abrão – nome original de Abraão – significa “pai poderoso”. O próprio Abraão foi escolhido “para que ele mesmo instruísse seus filhos e a sua casa depois dele para manter o caminho do Senhor” (Gen. 18:19) – isto é, ele foi escolhido para ser um “modelo de pai”. Como pode uma criança que rejeitou o caminho de seu pai se tornar um pai de filhos que não rejeitem, como revanche, o seu caminho? (1) Faz mais sentido dizer que Terach já tinha dúvidas sobre a idolatria e que foi ele quem inspirou Abraão a ir mais longe, espiritual e fisicamente. Abraão continuou a viagem que seu pai tinha começado, ajudando assim Isaac e Jacob, seu filho e seu neto, a traçarem seus próprios caminhos de servir a D-s – o mesmo D-s, mas encontrado de diferentes maneiras.
O que nos leva de volta a Mark Twain. Muitas vezes, começamos a pensar como somos diferentes de nossos pais. Leva tempo para nós apreciarmos o quanto eles nos ajudaram a ser a pessoa que somos. Mesmo quando pensávamos que estávamos fugindo, estávamos de fato continuando sua viagem. Muito do que nós somos é consequência do que eles foram.

NOTA:
(1) Rashi (para Gen. 11:31) diz que foi para ocultar a ruptura entre filho e pai que a Torá registra o falecimento de Terach antes do chamado de D-s para Abraão. No entanto, veja Ramban ad loc.

Texto original: “JOURNEY OF THE GENERATIONS” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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