MISHPATIM

Posted on fevereiro 1, 2016

MISHPATIM

Fazer e Ouvir

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Uma das frases mais famosas da Torá faz a sua aparição na parashá desta semana. Tem sido frequentemente utilizada para caracterizar a fé judaica como um todo. É composta de duas palavras: naassê venishmá, literalmente, “Faremos e ouviremos” (Ex. 24:7). O que isso significa e por que isso tem importância?

Há duas interpretações famosas, uma antiga, a outra moderna. A primeira aparece no Talmud babilônico (1), onde se descreve o entusiasmo e toda sinceridade com que os israelitas aceitaram a aliança com D-s no Monte Sinai. Quando disseram a Moisés: “Tudo o que o Senhor falou faremos e ouviremos”, eles estavam dizendo, na verdade: Tudo o que D-s pede de nós, vamos fazer – dizendo isso antes de ter ouvido qualquer um dos mandamentos. As palavras “Vamos ouvir”, quer dizer que eles ainda não tinham ouvido – não os Dez Mandamentos ou as leis detalhadas que se seguiram, conforme estabelecido na nossa parashá. Então, eles estavam desejosos de assinalar a sua aquiescência a D-s de que eles concordaram em suas exigências antes de saber quais seriam (2).

Esta leitura, aprovada também por Rashi em seu comentário à Torá, é difícil porque depende de ler a narrativa fora da sequência cronológica (usando o princípio de que “não há antes e depois na Torá”). Os acontecimentos do capítulo 24, nesta interpretação, aconteceram antes do capítulo 20, a descrição da revelação no Monte Sinai e os Dez Mandamentos. Ibn Ezra, Rashbam e Ramban todos discordam e leem os capítulos em sequência cronológica. Para eles, as palavras naassê venishmá não significam “nós faremos e ouviremos”, mas simplesmente, “nós faremos e obedeceremos”.

A segunda interpretação – não no sentido literal do texto, contudo importante – foi frequentemente dada no pensamento judaico moderno. Deste ponto de vista naassê venishmá significa, “Nós faremos e nós iremos entender” (3). A partir disto eles derivam a conclusão de que só podemos compreender o judaísmo ao exercê-lo, ou seja, executando as ordens e vivendo uma vida judaica. No princípio está a ação (4). Só então vem a captação, o insight e a compreensão.

Este é um sinal e um ponto substancial. A mente ocidental moderna tende a colocar as coisas em ordem inversa. Procuramos entender o que estamos prestes a nos comprometer, antes de fazer o compromisso. Isso é bom quando o que está em jogo é a assinatura de um contrato, a compra de um novo telefone celular ou a assinatura de uma nova revista, mas não ao fazer um compromisso existencial profundo. A única maneira de entender a liderança é liderar. A única maneira de entender o casamento é se casar. A única maneira de entender se um determinado plano de carreira é ideal para você é experimentá-lo realmente por um período prolongado. Aqueles que ficam em “cima do muro”, relutantes em tomar uma decisão até que todos os fatos estejam sob seu controle, acabarão por descobrir que a vida passou por eles (5). A única maneira de entender um modo de vida é correr o risco de vivê-la (6). Então: naassê venishmá, “Nós faremos e, ao final, através da prática contínua e longa exposição, vamos entender”.

Na minha Introdução ao “Covenant and Conversation” deste ano, eu sugeri uma terceira interpretação bastante diferente, com base no fato de que os israelitas são descritos pela Torá como ratificando o Pacto três vezes: uma vez antes de ouvirem os mandamentos e duas vezes depois. Há uma diferença fascinante entre a forma como a Torá descreve as duas primeiras destas respostas e a terceira:

Todo o povo respondeu conjuntamente, “Faremos [naasê] tudo que o Senhor disser” (Ex. 19:8).

Quando Moisés foi e contou ao povo todas as palavras e as leis do Senhor, eles responderam com uma só voz: “Tudo que o Senhor falou nós faremos [naasê]” (Ex. 24:3).

Então ele pegou o livro do Pacto e o leu para o povo. Eles responderam: “Nós vamos fazer e ouvir [naasê venishmá] tudo o que o Senhor disser” (Ex. 24:7).

As duas primeiras respostas, que se referem apenas à ação (naassê), são dadas por unanimidade. O povo responde “em conjunto”. Eles fazem isso “com uma só voz”. Na terceira, que se refere não só a fazer, mas também a ouvir (nishmá), não há unanimidade. “Ouvir” aqui significa muitas coisas: ouvir, prestar atenção, compreender, absorver, internalizar, responder e obedecer.

Refere-se, em outras palavras, ao espiritual, à dimensão interior do judaísmo.

Segue-se daí uma consequência importante. O judaísmo é uma comunidade mais do “fazer” do que do “ouvir”. Há um código autoritário da lei judaica. Quando se trata de halachá, a maneira judaica de fazer, buscamos o consenso.

Por outro lado, mesmo que hajam os princípios inabaláveis da fé judaica, quando se trata de espiritualidade não existe uma abordagem judaica normativa única. O judaísmo teve seus sacerdotes e profetas, seus racionalistas e místicos, seus filósofos e poetas. O Tanach, a Bíblia Hebraica, fala em uma multiplicidade de vozes. Isaías não era Ezequiel. O livro de Provérbios vem de uma mentalidade diferente do que os livros de Amós e Oséias. A Torá contém lei e narrativa, história e visão mística, ritual e oração. Existem normas sobre como agir como judeus. Mas há pouco sobre como pensar e sentir como judeus.

Nós experimentamos D-s de diferentes maneiras. Alguns O encontram na natureza, no que Wordsworth chamou de “um sentido sublime / De algo infundido muito mais profundamente / cuja morada é a luz do sol poente / E o oceano rodeando e o ar vivo”. Outros O encontram na emoção interpessoal, na experiência de amar e ser amado – o que Rabi Akiva quis dizer quando disse que em um verdadeiro casamento, “a presença divina encontra-se entre marido e mulher”.

Alguns encontram D-s no chamado profético: “Que a justiça corra como um rio, e a retidão como um córrego que nunca falha” (Amós 5:24). Outros O encontram no estudo, regozijando-se nas palavras de sua Torá… por que elas são a nossa vida e a duração de nossos dias; sobre a Torá, vamos meditar dia e noite. No entanto, outros O encontram em oração, descobrindo que D-s está perto de todos os que O invocam de verdade.

Há aqueles que encontram D-s na alegria, dançando e cantando como fez o Rei David, quando ele trouxe a Arca Sagrada para Jerusalém. Outros – ou as mesmas pessoas em diferentes pontos das suas vidas – O encontram nas profundezas, em lágrimas e remorso e num coração partido. Einstein encontrou D-s na “terrível simetria” e ordenada complexidade do universo. Rav Kook encontrou-O na harmonia da diversidade. Rav Soloveitchik encontrou-O na solidão do ser quando ele estende a mão para a alma do próprio Ser.

Há uma maneira normativa de fazer o ato sagrado, mas há muitas maneiras de ouvir a voz sagrada, encontrar a presença sagrada, sentir-se como um e ao mesmo tempo como somos pequenos e ainda quão grande é o universo que habitamos, quão insignificante devemos parecer quando comparados com a vastidão do espaço e as miríades de estrelas, mas como significativamente somos monumentais, sabendo que D-s estabeleceu a Sua imagem e semelhança sobre nós e nos colocou aqui, neste lugar, neste momento, com estas dádivas, nestas circunstâncias, com uma tarefa para executar, se formos capazes de discerni-la. Podemos encontrar D-s nas alturas e nas profundezas, na solidão e na união, no amor e no medo, na gratidão e na necessidade, na luz ofuscante e, no meio da escuridão profunda. Podemos encontrar D-s procurando-O, mas às vezes Ele nos encontra quando menos esperamos.

Essa é a diferença entre naassê e nishmá. Nós fazemos o ato divino “juntos”. Nós respondemos a seus mandamentos “com uma só voz”. Mas ouvimos a presença de D-s de muitas maneiras, porque embora D-s seja um só, nós somos todos diferentes, e cada um de nós O encontra em nosso próprio caminho.

NOTAS:

  1. Shabat 88a-b.
  2. Há, é claro, interpretações bastante diferentes da concordância dos israelitas. De acordo com uma delas, D-s “suspendeu a montanha sobre eles”, não lhes dando nenhuma escolha a não ser concordar ou morrer (Shabat 88a).
  3. A palavra já carrega esse significado no hebraico bíblico conforme a história da torre de babel, onde D-s diz, venham, vamos confundir a sua linguagem para que as pessoas não sejam capazes de compreender o seu vizinho.
  4. Essa é a famosa frase de Faust (Goethe).
  5. Isso é semelhante a questão colocada por Bernard Williams em seu famoso ensaio, ‘Sorte Moral’, que há certas decisões – o seu exemplo é a decisão de Gauguin de abandonar sua carreira e família e ir para o Taiti para pintar – sobre a qual nós não podemos saber se elas são a decisão certa até que tenhamos tomado o caminho delas e ver como elas funcionam. Todas essas decisões existenciais envolvem riscos.
  6. Esta, aliás, é a abordagem sociológica e antropológica de Verstehen, ou seja, que as culturas não podem ser totalmente compreendidas a partir do exterior. Elas precisam ser experimentadas a partir de dentro. Essa é uma das principais diferenças entre as ciências sociais e as ciências naturais.

Texto original: “DOING AND HEARING” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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