TZAV

Posted on março 23, 2016

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Para Entender os Sacrifícios

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Um dos elementos mais difíceis da Torá e do modo de vida que ela prescreve é ​​o fenômeno dos sacrifícios de animais – por razões óbvias. Em primeiro lugar, os judeus e o Judaísmo têm sobrevivido sem eles por quase dois mil anos. Em segundo lugar, praticamente todos os profetas os criticavam, inclusive Jeremias, na haftará desta semana (1). Nenhum dos profetas procurou abolir os sacrifícios, mas eles foram severamente críticos sobre aqueles que os ofereciam, enquanto ao mesmo tempo oprimiam ou exploravam os demais seres humanos. O que os perturbavam – o que perturbou a D-s, em nome de quem eles falavam – era que, evidentemente, algumas pessoas pensavam sobre os sacrifícios como uma espécie de suborno: se oferecermos um presente generoso ou suficiente para D-s, então Ele pode ignorar nossos crimes e contravenções. Essa é uma ideia radicalmente incompatível com o judaísmo.

Então mais uma vez, juntamente com a monarquia, os sacrifícios estavam entre as características menos distintivas do Judaísmo nos tempos antigos. Toda religião antiga naqueles dias, todos os cultos e seitas, teve seus altares e sacrifícios. Ao final, continua a ser notável como os sábios, de forma simples e suave, foram capazes de construir substitutos para o sacrifício, três em particular: oração, estudo e tzedaká. Oração, particularmente Shacharit, Minchá e Mussaf, tomou o lugar das oferendas regulares. Aquele que estuda as leis do sacrifício é como se tivesse levado um sacrifício. E aquele que doa para a caridade traz, por assim dizer, um sacrifício financeiro, reconhecendo que tudo o que temos devemos a D-s.

Assim, embora nós oremos diariamente para a reconstrução do Templo e da restauração dos sacrifícios, o princípio do sacrifício em si continua a ser difícil de ser entendido. Muitas teorias têm sido formuladas por antropólogos, psicólogos e estudiosos da Bíblia, sobre o que os sacrifícios representavam, mas a maioria se baseia no pressuposto questionável de que o sacrifício é essencialmente o mesmo ato entre as culturas. Essa é uma conclusão de um estudo pobre. Sempre busque entender uma prática em termos das crenças distintivas na cultura na qual ela ocorre. O que poderia o sacrifício significar em uma religião em que D-s é o criador e dono de tudo?

O que então era o sacrifício no judaísmo e por que ele continua a ser importante, pelo menos como uma ideia, até os dias de hoje? A resposta mais simples – embora ela não explique os detalhes dos diferentes tipos de oferendas – é a seguinte: Nós amamos aquilo que estamos dispostos a sacrificar. Por isso, quando os israelitas eram uma nação de agricultores e pastores, eles demonstravam seu amor por D-s trazendo-lhe um presente simbólico através de seus rebanhos e manadas, seus grãos e frutas; isto é, de seus meios de subsistência. Amar é agradecer. Amar é querer trazer uma oferta ao Amado. Amar é doar (2). O sacrifício é a coreografia do amor.

Isso é verdade em muitos aspectos da vida. Um casal feliz está constantemente fazendo sacrifícios um para o outro. Os pais fazem sacrifícios enormes para os seus filhos. Pessoas atraídas por um chamado – para curar os doentes, ou cuidar dos pobres, ou lutar por justiça para os fracos contra os fortes – muitas vezes sacrificam carreiras remuneradas em prol dos seus ideais. Em épocas de patriotismo, as pessoas fazem sacrifícios para seu país. Em comunidades fortes pessoas fazem sacrifícios uns para os outros quando alguém está em perigo ou precisa de ajuda. Sacrifício é a supercola dos relacionamentos. Ele nos liga uns aos outros.

É por isso que, na era bíblica, os sacrifícios eram tão importantes – não como eles eram em outras religiões, mas precisamente porque no coração pulsante do judaísmo reside o amor: “Amarás o Senhor teu D-s com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças”. Em outras fés, o motivador por trás dos sacrifícios era o medo: medo da raiva e do poder dos deuses. No judaísmo era o amor.

Vemos isso na palavra hebraica para sacrificar-se: o substantivo korban, e o verbo lehakriv, que significa, “para vir, ou trazer para perto”. O nome de D-s, invariavelmente usado em conexão com os sacrifícios é Hashem, D-s em seu aspecto de amor e compaixão, e não Elokim, D-s distante e como justiça. A palavra Elokim aparece apenas cinco vezes no total no livro de Vaykrá, e sempre no contexto de outras nações. A palavra Hashem aparece 209 vezes. E como vimos na semana passada, o próprio nome do livro, Vaykrá, significa a invocação do amor. Onde há amor, há sacrifício.

Quando percebemos isso, começamos a entender o quão profundamente relevante é o conceito de sacrifício no século XXI. As principais instituições do mundo moderno – o Estado democrático liberal e a economia de mercado livre – basearam-se no modelo do ator racional, isto é, aquele que age para maximizar os benefícios para si próprio.

A consideração de Hobbes sobre o contrato social foi no sentido que é do interesse de cada um de nós entregar alguns de nossos direitos a um poder central, encarregado de assegurar a aplicação da lei e a defesa do reinado. O insight de Adam Smith na economia de mercado foi que, se cada um de nós agirmos de forma a maximizar a nossa própria vantagem, o resultado é o crescimento da comunidade. A política e a economia modernas foram construídas sobre a fundação da busca racional do interesse próprio.

Não havia nada de errado com isso. Foi feito com o mais elevado dos motivos. Foi uma tentativa de criar a paz numa Europa que há séculos tinha sido devastada pela guerra. O Estado democrático e a economia de mercado eram sérias tentativas para aproveitar o poder do auto interesse de forma a combater as paixões destrutivas que levaram à violência (3). O fato de que a política e a economia estavam baseadas no interesse próprio não negava a possibilidade de famílias e comunidades serem sustentadas pelo altruísmo. Foi um bom sistema.

Agora, contudo, depois de vários séculos, a ideia do amor-como-sacrifício tem definhado em muitas áreas da vida. Vemos isso especificamente nos relacionamentos. Em todo o Ocidente, menos pessoas estão se casando, elas estão se casando mais tarde, e quase metade dos casamentos terminam em divórcio. Em toda a Europa as populações nativas estão em declínio. Para se ter uma população estável, um país deve ter uma taxa média de natalidade de 2,1 filhos por mulher. Em 2015, a taxa de natalidade média em toda a União Europeia foi de 1,55. Na Espanha, foi de 1,27.  A Alemanha tem a menor taxa de natalidade de qualquer país do mundo (4). É por isso que a população da Europa é hoje considerada estável somente na base das taxas sem precedentes de imigração.

Perca o conceito de sacrifício dentro de uma sociedade, e mais cedo ou mais tarde o casamento vacila, a paternidade declina, e a sociedade lentamente envelhece e morre. Meu predecessor, Lord Jakobovits, tinha uma bela maneira de colocar isso. O Talmud diz que quando um homem se divorcia de sua primeira esposa, “o altar derrama lágrimas” (Guitin 90b). Qual é a conexão entre o altar e o casamento? Ambos, dizia ele, tratam de sacrifícios. Casamentos fracassam quando os parceiros não estão dispostos a fazer sacrifícios um para o outro.

Os judeus e o Judaísmo sobreviveram apesar dos muitos sacrifícios que as pessoas tinham de fazer por ele. No século XI, Judá Halevi expressou algo próximo de reverência pelo fato dos judeus permanecerem judeus, mesmo que “com uma simples palavra” eles poderiam ter se convertido à fé da maioria e viverem uma vida de relativa facilidade (Kuzari 4:23). Muito embora é igualmente possível que o Judaísmo tenha sobrevivido por causa desses sacrifícios. Quando as pessoas fazem sacrifícios por seus ideais, os ideais se fortalecem. O sacrifício é uma expressão de amor.

Nem todo sacrifício é sagrado. Hoje em dia suicidas (atados a bombas) sacrificam suas vidas e as de suas vítimas de uma forma que argumentei (em Não em nome de D-s) como sendo um sacrilégio. Na verdade, a própria existência do sacrifício de animais na Torá pode ter sido uma maneira de evitar que as pessoas oferecessem o sacrifício humano sob a forma de violência e guerra. Mas o princípio do sacrifício permanece. É o presente que trazemos para quem e para o que amamos.

 

NOTAS:
1- Jeremias 7:22, “Quando Eu libertei seus antepassados na terra do Egito, Eu não falei ou ordenei a eles sobre queima de oferendas ou sacrifícios” – uma notável declaração. Veja Rashi e Radak ad loc., e especialmente Maimônides, Guia dos Perplexos, III:32.
2- O verbo “amar” – a-h-v – está relacionado com os verbos h-v-h, h-v-v and y-h-v, todos eles com o sentido de dar, trazer ou oferecer.
3- O texto clássico é A. O. Hirschman, The Passions and the Interests, Princeton University Press, 1977.
4- The Observer, 23 de Agosto de 2015.
Texto original: “UNDERSTANDING SACRIFICE” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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