VAIELECH

Posted on setembro 18, 2015

VAIELECH

TORÁ COMO CANÇÃO

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

A longa e tempestuosa carreira de Moisés está terminando. Com palavras de bênção e encorajamento ele entrega o manto de liderança a seu sucessor Josué, dizendo: “Eu tenho cento e vinte anos de idade hoje. Eu não posso mais sair e entrar, já que o Senhor me disse, você não vai atravessar o Jordão” (31:2). Conforme observa Rashi, ele diz, “eu não posso mais” e não “eu não consigo mais”. Ele ainda está com vigor corporal completo, “seus olhos intactos e sua energia natural inabalável”. Mas ele alcançou o fim de seu caminho pessoal. Chegou a hora para outra era, uma nova geração, e um tipo diferente de líder.


Mas antes que ele se despedisse da vida, D-s tem uma última ordem para ele, e através dele, para o futuro: “E agora escreva para vocês esta canção e ensine-a aos filhos de Israel, coloque-a nas suas bocas, para que este cântico possa ser uma testemunha para Mim no meio dos filhos de Israel” (32:19). O sentido claro do versículo é que D-s está comandando Moisés e Josué a escrever a canção que vai se seguir, aquela de Haazinu (32:1-43). E assim compreenderam Rashi e Nachmânides. Mas a tradição oral leu de forma diferente.
De acordo com os sábios, “E agora escreva para vocês” aplica-se à Torá como um todo. Assim, o último de todos os 613 mandamentos é escrever – ou pelo menos fazer parte da escrita, mesmo que seja apenas uma única letra – um rolo da Torá. Aqui está a declaração de Maimônides da lei:
Todo israelita é ordenado a escrever um rolo de pergaminho da Torá para si mesmo, conforme está dito, “Agora, pois, escreva esta canção”, que significa: “Escreva para você uma cópia completa da Torá que contem esta canção”, uma vez que não escrevemos passagens isoladas da Torá [mas somente um rolo de pergaminho completo]. Mesmo que alguém tenha herdado um rolo de pergaminho da Torá de seus pais, no entanto, é uma mitzvá escrever um para si mesmo, e quem faz isso é como se ele tivesse recebido [a Torá] do Monte Sinai. Aquele que não sabe como escrever um pergaminho pode contratar [um escriba] para fazer isso por ele, e quem corrige até mesmo uma letra é como se ele tivesse escrito o pergaminho inteiro (1).
Por que esse mandamento? Por que especialmente no final da vida de Moisés? Por que fazer desse o último de todos os mandamentos? E se a referência é à Torá como um todo, por que o chamam de “canção”?
A tradição oral está insinuando uma série de ideias muito profundas. Primeiro, está dizendo aos israelitas, e a nós, em cada geração, que não é suficiente dizer: “Nós recebemos a Torá de Moisés”, ou “de nossos pais”. Temos que tomar a Torá e torná-la nova em cada geração. Nós temos que escrever o nosso próprio rolo de pergaminho. O ponto é que a Torá não é antiga, mas sim nova; não trata apenas do passado, mas do futuro. Não é apenas um documento antigo que vem de uma época mais precoce na evolução da sociedade. Ela nos fala, aqui, agora. Mas não sem fazermos o esforço de escrevê-la novamente.
Há duas palavras hebraicas para uma herança: nachalá e yerushá / morashá. Elas transmitem ideias diferentes. Nachalá está relacionada com a palavra Nachal, significando um rio, um riacho. Como a água flui para baixo, assim uma herança flui ao longo das gerações. Isso acontece naturalmente. Ela não precisa de esforço da nossa parte.
Um yerushá / morashá é diferente. Aqui o verbo é ativo. Significa tomar posse de algo por uma ação positiva ou esforço. Os israelitas receberam a terra como resultado da promessa de D-s a Abraão. Foi o seu legado, mas, não obstante, tiveram que lutar as batalhas e ganhar as guerras. Mozart e Beethoven eram ambos nascidos de pais que foram músicos, ambos tinham uma rica herança genética, mas sua arte foi o resultado de trabalho duro, quase interminável. Torá é uma morashá, não uma nachalá. Precisamos escrevê-la para nós mesmos, e não apenas herdá-la de nossos antepassados.
E por que chamá-la [a Torá] de uma canção? Porque se estamos entregando nossa fé e nosso modo de vida para a próxima geração, ela deve cantar. A Torá deve ser afetiva, e não apenas cognitiva. Deve falar com nossas emoções. Como Antonio Damasio mostrou empiricamente em Erro de Descartes (2) – embora a parte racional do cérebro seja fundamental para nos fazer humanos, é o sistema límbico, a sede das emoções, que nos leva a escolher esse caminho, e não aquele. Se a nossa Torá carece de paixão, não teremos sucesso em passá-la para o futuro. A musica é uma dimensão afetiva da comunicação, o meio através do qual nos expressamos, evocamos e compartilhamos emoção. Precisamente porque somos criaturas da emoção, a musica é uma parte essencial do vocabulário da humanidade.
A musica tem uma associação próxima com a espiritualidade. Conforme Rainer Maria Rilke colocou:

Palavras ainda caminham suavemente em direção ao que não pode ser dito
E a música, sempre nova, a partir de pedras palpitantes
Constrói no espaço inútil seu lar divino.

A canção é central para a experiência judaica. Não oramos; nós rezamos, o que significa que cantamos as palavras em direção ao céu. Nós nem lemos a Torá. Em vez disso, nós cantamos, cada palavra com a sua própria entonação. Mesmo textos rabínicos não são apenas estudos; nós os cantamos com a canção particularmente conhecida de todos os alunos do Talmud. Cada texto, em cada tempo, tem as suas melodias específicas. A mesma oração pode ser cantada por meia-dúzia de melodias diferentes, dependendo se é parte do serviço da manhã, da tarde ou da noite, e se é um dia da semana, um sábado, uma festividade ou um dos Dias Elevadamente Sagrados. Existem diferentes cânticos para leituras bíblicas, dependendo se o texto vem da Torá, dos profetas, ou dos Ketuvim, ‘os escritos’. A música é o mapa do espírito judeu, e cada experiência espiritual tem a sua própria paisagem melódica distintiva.
O judaísmo é uma religião de palavras e, no entanto, sempre que a língua do Judaísmo aspira ao espiritual ela a modula numa canção, como se as palavras em si procurassem escapar da atração gravitacional de significados finitos. A música fala para algo mais profundo do que a mente. Se quisermos fazer Torá renovada em cada geração, temos de encontrar maneiras de cantar sua música de uma nova forma. As palavras nunca mudam, mas a música sim.
Um Rabino Chefe de Israel do passado, Rabino Avraham Shapiro, uma vez me contou uma história sobre dois grandes sábios rabínicos do século 19, igualmente reconhecidos, tendo um deles perdido seus filhos pelo espirito secular da época, e o outro foi abençoado com filhos que seguiram seus caminhos. A diferença entre eles era essa, ele disse: quando chegava seudat shelishit, a Terceira refeição do Shabat, o primeiro falava palavras de Torá enquanto o segundo cantava canções. Sua mensagem foi clara. Sem uma dimensão afetuosa – sem música – Judaísmo é um corpo sem alma. São as canções que ensinamos aos nossos filhos que transmitem nosso amor por D-s. Há alguns anos atrás, um dos líderes do mundo judaico queria descobrir o que tinha acontecido com as crianças judias “desaparecidas” da Polônia; aquelas que, durante a guerra, haviam sido adotadas por famílias cristãs e criadas como católicos. Ele decidiu que a maneira mais fácil seria através dos alimentos. Ele organizou um grande banquete e colocou anúncios na imprensa polonesa, convidando quem quer que acreditasse que havia nascido judeu a vir a este jantar gratuito. Centenas vieram, mas a noite estava à beira de um desastre uma vez que nenhum dos presentes se lembrava de nada da sua mais tenra infância – até que o homem perguntou a pessoa sentada ao lado dele se podia se lembrar da canção que sua mãe judia cantava para ele antes de ir dormir. Ele começou a cantar Rozhinkes mit mandlen (passas e amêndoas), a antiga canção de ninar ídiche. Lentamente, outros se juntaram, até que a sala inteira tornou-se um coro. Às vezes, tudo o que resta da identidade judaica é uma canção.
O rabino Yehiel Michael Epstein na introdução ao Aruch ha-Shulchan, Choshen Mishpat, escreve que a Torá é comparada a uma canção porque, para aqueles que apreciam a música, o som do coral mais bonito é uma harmonia complexa, com muitas vozes diferentes cantando notas diferentes. Assim, diz ele, ocorre com a Torá e seus inúmeros comentários, as suas “setenta caras”. O judaísmo é um coral sinfônico marcado por muitas vozes, o texto escrito é a sua melodia, a tradição oral sua polifonia.
Por isso, é com um sentido poético de encerramento que a vida de Moisés termina com o mandamento de começar de novo em cada geração, escrevendo nosso próprio rolo de pergaminho, acrescentando nossos próprios comentários, o povo do livro, reinterpretando infinitamente o livro do povo, e cantando a sua canção. A Torá é o livreto de D-s, e nós, o povo judeu, somos seu coro. Coletivamente temos cantado a canção de D-s. Nós somos os executores de sua sinfonia coral. E, no entanto, quando os judeus falam, muitas vezes eles argumentam, quando cantam, cantam em harmonia, porque as palavras são a linguagem da mente, mas a música é a linguagem da alma.

Texto original: “TORAH AS A SONG” por Rabino Jonathan Sacks.

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