REÊ

Posted on agosto 31, 2016

REÊ

O Profundo Poder da Alegria

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Em 14 de outubro de 1663 o famoso jornalista Samuel Pepys fez uma visita à Sinagoga Portuguesa e Espanhola em Creechurch Lane na cidade de Londres. Os judeus foram exilados de Londres em 1290, mas em 1656, seguindo uma intervenção do Rabino Menassê ben Israel de Amsterdã, Oliver Cromwell concluiu que não havia de fato nenhuma barreira legal para os judeus viverem lá. Então, pela primeira vez desde o século 13, os judeus puderam fazer seu culto abertamente.

A primeira sinagoga, aquela que Pepys visitou, foi simplesmente uma casa particular, pertencente ao bem sucedido comerciante judeu português Antonio Fernandez Carvajal, que foi usada para abrigar a congregação. Pepys havia estado na sinagoga uma vez antes, no serviço memorial por Carvajal que morreu em 1659. Essa ocasião havia sido sóbria. O que ele viu em sua segunda visita foi outra coisa, uma cena de celebração que o deixou escandalizado. Isso foi o que ele escreveu em seu jornal:

“… depois do jantar eu e minha esposa fomos conduzidos pelo Sr. Rawlinson à sinagoga judaica: onde homens e rapazes usavam seus xales (Talitot) e as mulheres estavam atrás de uma divisória, de onde não podem ser vistas; algumas coisas aparecem, o que eu acredito ser sua lei, num armário protegido (o Aron Hakodesh), para as quais todos se curvam; e quando colocam seus xales dizem alguma coisa, para a qual os que escutam clamam Amen, e o que está colocando beija seu xale. Seu serviço é todo cantado, e em hebraico. E as leis que eles tiram do armário são carregadas por vários homens, quatro ou cinco carregam todas, e eles liberam um ao outro para carregar também; E se todos desejam carregar, não saberia dizer, então eles dão voltas pela sala enquanto esse serviço é cantado… Mas Senhor! Ver aquela desordem, risos, nenhuma atenção, mas confusão em todo esse serviço, mais como brutos do que pessoas que conhecem o verdadeiro D’s, faria um homem renegar algum dia ter visto coisa do tipo e, realmente, eu nunca vi nada igual, ou poderia imaginar que existisse qualquer religião no mundo inteiro tão absurdamente praticada como essa”.

Pobre Pepys. Ninguém lhe falou que o dia que ele escolheu para vir à sinagoga era Simchat Torá; tampouco ele já havia visto numa sala de culto algo com tal exuberante alegria como a desse dia, em que dançamos com o rolo de Torá, como se o mundo fosse um casamento e o livro fosse uma noiva, tendo o mesmo entusiasmo efusivo de quando o Rei David trouxe a arca sagrada para Jerusalém.

Alegria não é a primeira palavra que vem naturalmente à mente quando pensamos sobre a severidade do judaísmo como um código moral ou sobre as páginas inundadas de lágrimas da história judaica. Como judeus temos graduação em sofrimento, pós-graduação em culpa, e performances de medalhistas de ouro em lamentação.  Alguém um dia resumiu as festividades judaicas em três frases:  “Eles tentaram nos matar. Nós sobrevivemos. Vamos comer”. Ainda assim, na verdade, o que brilha através de vários salmos é alegria pura e radiante. E alegria é uma das palavras-chave no livro de Devarim. A raiz s-m-ch aparece uma vez em cada um dos quatro livros anteriores da Torá, mas 12 vezes em Devarim, sete delas na nossa parashá.

O que Moisés diz repetidamente é que alegria é o que deveríamos sentir na terra de Israel, a terra dada a nós por D-s, o lugar para onde tem sido direcionada a jornada da vida judaica desde os dias de Abraão e Sarah. O vasto universo com sua miríade de galáxias e estrelas é obra de arte de Deus, mas dentro dele está o planeta Terra, e dentro dele a terra de Israel, e a cidade sagrada de Jerusalém, que é onde Ele está mais próximo, onde sua presença paira no ar, onde o céu é o azul do paraíso e as pedras são um trono de ouro. Lá, diz Moisés, no “lugar que o Senhor vai escolher… para colocar seu Nome para lá residir” (Deut. 12:5), você vai celebrar o amor entre o pequeno e antes insignificante povo e o D-s que, tomando-o como Seu, os elevou para a grandeza.

Será lá, disse Moisés, que toda a truncada narrativa da história judaica tornar-se-ia clara, onde todo um povo – “você, seus filhos e filhas, seus servos e servas, e os levitas de suas cidades, que não tem porção hereditária com você” – irá cantar junto, cultuar junto e celebrar as festividades junto, sabendo que a história não se trata de império ou conquista, nem a sociedade sobre hierarquia e poder, que o cidadão comum e o rei, o israelita e o sacerdote, são iguais aos olhos de D-s, todas vozes no seu coro sagrado, todos participantes das danças no círculo cujo centro é a radiação do Divino. É disso que se trata a Aliança: a transformação da condição humana através do que Wordsworth chamou “o profundo poder da alegria” (1).

Felicidade (em grego, eudaemonia), disse Aristóteles, é o propósito derradeiro da existência humana. Desejamos muitas coisas, mas geralmente como meio para alguma outra coisa. Somente uma coisa é sempre desejável em si e nunca para o bem de outra coisa, qual seja, felicidade (2).

Há tal sentimento no judaísmo. A palavra bíblica para felicidade, Ashrê, é a primeira palavra no livro de Salmos e uma palavra-chave de nossas rezas diárias. Mas de forma muito mais frequente, o Tanach fala de simchá, alegria – e são coisas diferentes. Felicidade é algo que você pode sentir sozinho, mas alegria, no Tanach, é algo que você compartilha com outros.  No primeiro ano de casamento, determina Devarim (24:5), o marido deve “ficar em casa e trazer alegria para a esposa com quem casou”. Ao trazer os primeiros frutos ao Templo, “Você, o Levita e o estrangeiro que reside entre vocês, devem se alegrar com todas as coisas boas que o Senhor seu D-s deu a você e à sua família” (26:11). Em uma das frases mais extraordinárias na Torá, Moisés diz que maldições cairão sobre a nação não porque serviram ídolos ou abandonaram D-s, mas “Porque você não serviu o Senhor seu D-s com alegria pela abundância de todas as coisas” (28:47). Uma falha na alegria é o primeiro sinal de decadência e queda.

Existem outras diferenças. Felicidade permeia a vida inteira, mas alegria é no momento. Felicidade tende a ser uma emoção fria, mas alegria faz você querer dançar e cantar. É difícil sentir-se feliz no meio da incerteza. Mas você pode ainda sentir alegria. O Rei David nos Salmos falou de perigo, medo, desânimo, as vezes até desespero, mas suas canções normalmente terminam em grande estilo:

“Porque sua raiva dura somente um momento,
Mas seus favores duram uma vida inteira;
O choro pode permanecer pela noite,
Mas a alegria chega pela manhã…
Você tornou meu lamento em dança;
Você retirou minha mortalha e vestiu-me de alegria,
Para que meu coração possa cantar seus louvores e não se calar.
Senhor meu D-s, eu Lhe louvarei para sempre” (Salmo 30:6-13).

No judaísmo, alegria é a emoção religiosa suprema. Aqui estamos, em um mundo cheio de beleza. Cada respiro que respiramos é o espírito de D-s dentro de nós. À nossa volta está o amor que move o sol e todas as estrelas. Estamos aqui porque alguém quis que estivéssemos aqui. A alma que celebra, canta.

E sim, a vida é cheia de tristezas e decepções, problemas e dores, mas sob tudo isso há a maravilha de estarmos aqui, em um universo cheio de beleza, entre pessoas, as quais cada uma carrega dentro de si um traço da face de D-s. Robert Louis Stevenson disse corretamente: “Descubra onde reside a alegria e dê-lhe uma voz muito além de cantar. Pois perder a alegria é perder tudo”.

No judaísmo, fé não é uma rival para a ciência, uma tentativa de explicar o universo. É um sentimento de fascinação, nascido de um sentimento de gratidão. Judaísmo trata-se de pegar a vida com ambas as mãos e fazer uma benção sobre ela. É como se D-s nos dissesse: Eu fiz tudo isso para você. Esse é meu presente. Desfrute dele e faça outros desfrutarem também. Sempre que puder, cure alguma das dores que as pessoas infligem umas às outras, ou os milhares de preocupações que a carne é destinada a ter. Porque a dor, tristeza, medo, raiva, inveja, ressentimento, são todas coisas que embaçam sua visão e separam você de outros e de Mim.

Kierkegaard certa vez escreveu: “É preciso coragem moral para sofrer. É preciso coragem religiosa para se alegrar” (3). Eu acredito nisso com todo meu coração. E fico tocado pelo modo como judeus, que sabem o que é caminhar pelo vale da sombra da morte, ainda veem alegria como a emoção suprema da religião. Todos os dias começamos nossa prece da manhã com recitações de agradecimentos; que estamos aqui, com um mundo onde viver, família e amigos para amar e ser amados, prontos para começar um dia cheio de possibilidades, no qual, através de atos de bondade com amor, permitimos que a presença de D-s flua através de nós para a vida de outros.  A alegria ajuda a curar algumas das feridas de nosso mundo conturbado.

NOTAS:
1) William Wordsworth, “Lines Composed a Few Miles above Tintern Abbey, On Revisiting the Banks of the Wye during a Tour. 13 de Julho de 1798”.
2) Aristóteles, Nicomachean Ethics, 1097a 30-34.
3) Søren Kierkegaard, Journals and Papers, 2179.

Texto original: “THE DEEP POWER OF JOY” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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