KI TAVÔ

Posted on setembro 5, 2015

KI TAVÔ

A BUSCA DA ALEGRIA

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Felicidade, disse Aristóteles, é o bem supremo que todos os seres humanos almejam (1). Mas no judaísmo não é necessariamente assim. A felicidade é um valor elevado. Ashrê, a palavra hebraica mais próxima de felicidade, é a primeira palavra do livro de Salmos. Dizemos a oração conhecida como Ashrê três vezes por dia. Certamente podemos endossar a frase na declaração de independência americana que, entre os direitos inalienáveis ​​da humanidade estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

Mas Ashrê não é o valor central da Bíblia hebraica. Quase dez vezes mais frequentemente aparece a palavra Simchá, alegria. É um dos temas fundamentais do Deuteronômio como livro. A raiz s-m-ch aparece apenas uma vez em cada um dos livros: Gênesis, Êxodo, Levítico e Números, mas não menos que doze vezes em Deuteronômio. Encontra-se no coração da visão mosaica da vida na terra de Israel. É ali que servimos a D-s com alegria.

A alegria desempenha um papel chave em dois contextos na parashá desta semana. Um deles tem a ver com a proposta de trazer as primícias ao Templo em Jerusalém. Depois de descrever a cerimónia que ocorre, a Torá conclui: “Então você vai se alegrar em todas as boas coisas que o Senhor teu D-s te deu e à tua família, juntamente com os levitas e o estrangeiro no meio de ti” (26:11).

O outro contexto é bastante diferente e surpreendente. Ocorre no contexto das maldições. Há duas passagens de maldições na Torá, uma em Levítico 26, a outra aqui em Deuteronômio 28. As diferenças são notáveis. As maldições em Levítico terminam com uma nota de esperança. Aquelas em Deuteronômio terminam em desespero sombrio. As maldições em Levítico falam de um total abandono do judaísmo pelo povo. As pessoas andam be-keri com D-s, traduzida de várias formas como ‘com hostilidade’, ‘rebeldia’ ou ‘desprezo’. Mas as maldições em Deuteronômio são provocadas simplesmente “porque você não serve ao Senhor teu D-s com alegria de coração pela abundância de todas as coisas” (28:47).

Falta de alegria pode não ser a melhor maneira de viver, mas certamente nem mesmo é um pecado, muito menos algo que mereça uma ladainha de maldições. O que a Torá quer dizer quando atribui desastre nacional à falta de alegria? Por que a alegria parece importar mais do que a felicidade no judaísmo? Para responder essas perguntas temos primeiro que entender a diferença entre felicidade e alegria. Eis como o primeiro Salmo descreve a vida feliz:

Feliz é o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se colocou no caminho dos pecadores, nem se sentou onde sentam os zombadores. Mas seu desejo está na Torá do Senhor; em sua Torá medita dia e noite. Ele será como uma árvore plantada junto às correntes de água, tendo o seu fruto na estação apropriada, e cuja folha não murcha; e em tudo o que ele faz ele prospera (Salmo 1:1-3).

Essa é uma vida serena e abençoada, concedida a alguém que vive de acordo com a Torá. Como uma árvore, tal vida tem raízes. Não é soprada de um lado para outro por qualquer vento ou capricho passageiro. Essa pessoa dá frutos, permanece firme, sobrevive e prospera. Por tudo isso, a felicidade é o estado da mente de um indivíduo.

Simchá na Torá nunca se trata dos indivíduos. É sempre sobre algo que partilhamos. Um homem recém-casado não serve no exército por um ano, diz a Torá, para que ele possa ficar em casa “e trazer alegria para a esposa com quem ele casou” (Deut. 24:5). Você deve trazer todas as suas oferendas para o santuário central, disse Moisés, de modo que “Lá, na presença do Senhor, teu D-s, você e sua família comerão e se alegrarão com tudo o que puseres em tua mão, porque o Senhor vosso D-s te abençoou” (Deut. 12:7). As festividades conforme descritas em Deuteronômio são dias de alegria, precisamente porque são ocasiões de celebração coletiva: “você, seus filhos e filhas, seus servos e servas, os levitas nas suas cidades, e os estrangeiros, os órfãos e as viúvas que vivem entre vós” (16:11). Simchá é alegria compartilhada. Não é algo que experimentamos na solidão.

A felicidade é uma atitude perante a vida como um todo, enquanto a alegria é vivida no momento. J.D. Salinger disse uma vez: a felicidade é algo sólido, a alegria é líquida. Felicidade é algo que você persegue. Mas a alegria não. Ela descobre você. Tem a ver com um sentido de conexão com outras pessoas ou com D-s. Ela vem de um reino diferente da felicidade. É uma emoção social. É a exaltação que sentimos quando nos fundimos com outros. É o resgate da solidão.

Paradoxalmente, o livro bíblico que coloca mais foco na alegria é precisamente aquele muitas vezes considerado como o mais infeliz de todos, Kohelet, também conhecido como Eclesiastes. Kohelet é notoriamente o homem que tinha tudo e descreve tudo como hevel, uma palavra que ele usa quase quarenta vezes ao longo do livro e diversas vezes traduzido como “sem sentido, inútil, fútil, vazio”, ​​ou como a Bíblia de King James a declarou famosamente, ‘vaidade’. De fato, contudo, Kohelet usa a palavra simchá dezessete vezes, isto é, mais do que é usado em todos os livros mosaicos juntos. Após cada uma de suas meditações sobre a inutilidade da vida, Kohelet termina com uma exortação à alegria:

Eu sei que não há nada melhor para as pessoas do que se alegrar e fazer o bem durante a sua vida (3:12).

Então eu vi que não há nada melhor para uma pessoa do que se regozijar no seu trabalho, porque esse é o seu quinhão (3:22).

Dessa forma, recomendo regozijar-se na vida, porque não há nada melhor para uma pessoa debaixo do sol do que comer, beber e se alegrar (8:15).

Por mais que qualquer um possa viver muitos anos, deixe-o regozijar-se em todos eles (11:8).

Defendo no próximo machzor de Sucot que Kohelet só pode ser entendido se percebermos que hevel não significa “sem sentido, vazio ou fútil”. Significa ‘uma respiração superficial’. Kohelet é uma meditação sobre a mortalidade. Seja quanto tempo teremos de vida, sabemos que um dia vamos morrer. Nossas vidas são um mero microssegundo na história do universo. O cosmos dura para sempre, enquanto nós, vivos, mortais que respiram, somos uma mera respiração fugaz.

Kohelet é obcecado por isso, porque esse fato ameaça roubar a vida de qualquer certeza. Nós nunca vamos viver para ver os resultados dos nossos empreendimentos a longo prazo. Moisés não levou o povo para a Terra Prometida. Seus filhos não o seguiram para a grandeza. Mesmo ele, o maior dos profetas, não podia prever que ele seria lembrado para sempre como o maior líder que o povo judeu já teve. Lehavdil, Van Gogh vendeu apenas um quadro durante sua vida. Ele não poderia saber que acabaria por ser aclamado como um dos maiores pintores dos tempos modernos. Nós não sabemos o que nossos herdeiros irão fazer com o que nós deixarmos para eles. Não podemos saber como, ou se, vamos ser lembrados. Como, então, podemos encontrar sentido na vida?

Kohelet finalmente encontra o sentido, não na felicidade, mas na alegria – porque a alegria não vive em pensamentos do amanhã, mas na grata aceitação e celebração do hoje. Estamos aqui; estamos vivos; estamos entre outros que compartilham o nosso sentimento de júbilo. Estamos vivendo na terra de D-s, desfrutando de sua bênção, comendo o fruto da sua terra, regada por sua chuva, trazida para usufruto sob o seu sol, respirando o ar que Ele soprou dentro de nós, vivendo a vida que ele renova em nós a cada dia. E sim, nós não sabemos o que o amanhã pode trazer; e sim, estamos rodeados por inimigos; e sim, ser judeu nunca foi a opção mais segura ou fácil. Mas quando nos concentrarmos no momento, nos permitindo dançar, cantar e dar graças, quando fazemos as coisas por seu próprio valor, e não para qualquer outra recompensa, quando fizermos as coisas por seu próprio mérito e não por qualquer outra recompensa, quando deixarmos de lado nossas diferenças e nos tornamos uma voz em coro na cidade sagrada, então haverá alegria.

Kierkegaard escreveu certa vez: “É preciso coragem moral para se lamentar; é preciso coragem religiosa para se alegrar” (2). É um dos fatos mais comoventes sobre o Judaísmo e sobre o povo judeu que, apesar de nossa história ter sido atingida com tragédia, ainda assim os judeus nunca perderam a capacidade de se alegrar, de celebrar no coração das trevas, de cantar a canção do Senhor, mesmo em uma terra estranha. Há religiões orientais que prometem paz de espírito se pudermos treinar hábitos de aceitação. Epicurus ensinou aos seus discípulos que evitassem riscos como o casamento ou uma carreira na vida pública. Nenhuma dessas abordagens deve ser negada, mas o judaísmo não é uma religião de aceitação, nem judeus tenderam a buscar a vida livre de risco. Podemos sobreviver os fracassos e as derrotas se nunca perdermos a capacidade de nos alegrar. Em Sucot, deixamos a segurança e o conforto de nossas casas e vivemos em um barraco exposto ao vento, ao frio e à chuva. Ainda assim chamamos de zeman simchatenu, nossa época de alegria. Isso não é uma pequena parte do que é ser um judeu.

Daí a insistência de Moisés de que a capacidade para a alegria é o que dá ao povo judeu a força para suportar. Sem ela, nós nos tornamos vulneráveis ​​aos vários desastres previstos nas maldições da nossa parashá. Comemorar juntos nos une como povo: isso e a gratidão e humildade que vêm de observarmos nossas realizações não como “realizadas por nosso próprio esforço”, mas como bênçãos de D-s. A busca da felicidade pode levar, em última análise, a uma elevada autoestima e consequente indiferença para com o sofrimento dos outros. Pode levar a um comportamento de aversão ao risco e uma falha em ter ‘audácia’. A alegria não é assim. Alegria nos conecta com os outros e com D-s. A alegria é a capacidade de celebrar a vida como tal, sabendo que o que quer que o amanhã possa trazer, estamos aqui hoje, sob o céu de D-s, no universo que ele fez, para o qual ele nos convidou a participar.

Perto do fim de sua vida, depois de ter ficado surdo por vinte anos, Beethoven compôs uma das maiores peças de música já escritas, sua Nona Sinfonia. Intuitivamente ele sentiu que esse trabalho necessitava do som de vozes humanas. Tornou-se a primeira sinfonia coral do Ocidente. As palavras que ele adaptou à sua música foram as de “Ode à Alegria” de Schiller. Eu penso no Judaísmo como uma ode à alegria. Como Beethoven, os judeus têm conhecido sofrimento, isolamento, dificuldades e rejeição, mas nunca lhes faltou coragem religiosa para se alegrar. Um povo que pode conhecer a insegurança e ainda assim sentir alegria é aquele que nunca poderá ser derrotado, pois seu espírito nunca pode ser abalado; nem a sua esperança destruída.

NOTAS:

  • Aristóteles, Nicomachean Ethics, Book 1.
  • Journals and Papers, vol. 2, Bloomington, Indiana University Press, 1967, p. 493.

Texto original: “THE PURSUIT OF JOY” por Rabino Jonathan Sacks.

Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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