TAZRIA

Posted on abril 6, 2016

TAZRIA

O Oitavo Dia

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Nossa parashá começa com o assunto do parto e, no caso de uma criança do sexo masculino, “No oitavo dia a carne de seu prepúcio será circuncidada” (Lev. 12:3). Isso tornou-se conhecido não apenas como milá, “circuncisão”, mas algo bem mais teológico, brit milá, “o pacto da circuncisão”. Isso porque, mesmo antes do Sinai, quase na aurora da história judaica, a circuncisão tornou-se o sinal da aliança de D-s com Abraão (Gen. 17:1-14).

Por que a circuncisão? Por que isso foi, desde o início, não simplesmente uma mitzvá, um mandamento entre outros, mas o próprio sinal da nossa aliança com D-s e a Sua conosco? E por que no oitavo dia? A parashá da semana passada foi chamada Shemini, “o oitavo [dia]” (Lev. 9:1) porque ela lidou com a inauguração do Mishkan, o Santuário, que também ocorreu no oitavo dia. Existe alguma conexão entre esses dois eventos bem diferentes?

O lugar para começar é um estranho Midrash que menciona um encontro entre o governador romano Tyranus Rufus (1) e Rabi Akiva. Rufus começou a conversa perguntando, “de quem são as melhores obras, as de D-s ou as do homem?” Surpreendentemente, o Rabino respondeu: “Aquelas dos homens”. Rufus respondeu: “Mas olhe para os céus e a terra. Pode um ser humano fazer algo assim?” Rabi Akiva respondeu que a comparação não era justa. “Criar o céu e a terra está claramente além da capacidade humana. Dê-me um exemplo tirado de matérias que são de âmbito humano”. Rufus então disse: “Por que vocês praticam a circuncisão?” Sobre isso, Rabi Akiva respondeu: “Eu sabia que você ia fazer essa pergunta. É por isso que eu disse de antemão que as obras do homem são melhores do que as de D-s”.

O Rabino então colocou na frente do governador espigas de milho e bolos. O milho não processado é o trabalho de D-s. O bolo é o trabalho do homem. Não é mais agradável comer o bolo ao invés das espigas de milho? Rufus então disse: “Se D-s realmente quer que façamos a circuncisão, por que Ele não faz com que bebês nasçam circuncidados?” Rabi Akiva respondeu: “D-s deu os mandamentos para Israel a fim de refinar nosso caráter” (2). Essa é uma conversa muito estranha, mas como veremos, profundamente significativa. Para entender isso, temos que voltar para o início dos tempos.

A Torá nos diz que durante seis dias D-s criou o universo e no sétimo descansou, declarando-o santo. Sua última criação, no sexto dia, foi a humanidade: o primeiro homem e a primeira mulher. De acordo com os sábios, Adão e Eva pecaram comendo do fruto proibido naquele mesmo dia e foram condenados ao exílio do Jardim do Éden. No entanto, D-s atrasou a execução da sentença por um dia para lhes permitir passar o Shabat no Jardim. Quando o dia chegou ao fim, os humanos estavam prestes a ser enviados para o mundo na escuridão da noite. D-s teve pena deles e mostrou-lhes como fazer luz. É por isso que acendemos uma vela especial na Havdalá, não apenas para marcar o final do Shabat, mas também para mostrar que nós começamos os dias comuns da semana com a luz que D-s nos ensinou a fazer.

A vela da Havdalá representa, portanto, a luz do oitavo dia – que marca o início da criatividade humana. Assim como D-s começou o primeiro dia da criação com as palavras: “Que haja luz”, então no início do oitavo dia Ele mostrou aos seres humanos como eles também poderiam fazer luz. A criatividade humana é concebida no judaísmo como paralela à criatividade Divina (3), e seu símbolo é o oitavo dia.

É por isso que o Tabernáculo foi inaugurado no oitavo dia. Como Nechama Leibowitz e outros observaram, existe um paralelismo inconfundível entre a linguagem da Torá usada para descrever a criação do universo de D-s e a criação do Santuário dos israelitas. O Tabernáculo era um microcosmo – um cosmos em miniatura. Assim Gênesis começa e Êxodo termina, com histórias da criação, a primeira por D-s, a segunda pelos israelitas. O oitavo dia é quando celebramos a contribuição humana para a criação.

É também por isso que a circuncisão ocorre no oitavo dia. Toda a vida, acreditamos, vem de D-s. Cada ser humano carrega sua imagem e semelhança. Vemos cada criança como presente de D-s: “As crianças são a provisão do Senhor; o fruto do ventre, sua recompensa” (Salmo 127:3). No entanto, é preciso um ato humano – a circuncisão – para sinalizar que uma criança judia masculina entrou na aliança. É por isso que ocorre no oitavo dia, para enfatizar que o ato que simboliza a entrada na aliança é humano – assim como foi quando os israelitas disseram ao pé do Monte Sinai: “Tudo o que o Senhor disse vamos fazer e obedecer” (Ex. 24:7).

Mutualidade e reciprocidade marcam a natureza especial da aliança específica que fez D-s, em primeiro lugar com Abraão, depois com Moisés e os israelitas. É isso que a diferencia do pacto universal que D-s fez com Noé e através dele com toda a humanidade. Esse pacto, estabelecido em Gênesis 9, não envolveu qualquer resposta humana. Seu conteúdo são os sete mandamentos de Noé. Seu sinal foi o arco-íris. Mas D-s não pediu nada de Noé, nem mesmo o seu consentimento. O judaísmo incorpora uma dualidade única do universal e do particular. Estamos todos em aliança com D-s pelo simples fato de nossa humanidade. Somos ligados, todos nós, pelas leis básicas da moralidade. Isso é parte do que significa ser humano.

Mas ser judeu é também ser parte de uma aliança particular de reciprocidade com D-s. D-s chama. Nós respondemos. D-s começa o trabalho e convida-nos para concluí-lo. Isso é o que o ato da circuncisão representa. D-s não fez as crianças do sexo masculino nascerem circuncidadas, disse Rabi Akiva, porque Ele deliberadamente deixou esse ato, esse sinal da aliança, para nós.

Agora começamos a entender toda a profundidade da conversa entre Rabi Akiva e o governador romano Tineius Rufus. Para os romanos, gregos e o mundo antigo em geral, os deuses deveriam ser encontrados na natureza: o sol, o mar, o céu, a terra e suas estações, os campos e sua fertilidade. No judaísmo, D-s está além da natureza, e Sua aliança conosco nos leva além da natureza também. Portanto, para nós, nem tudo natural é bom. A guerra é natural. O conflito é natural. A competição violenta para ser o macho alfa é natural. Judeus – e outros inspirados pelo D-s de Abraão – acreditam, como Kathryn Hepburn disse para Humphrey Bogart em A Rainha Africana, que a “Natureza, Sr. Allnut, é o que somos colocados neste mundo para elevar-nos acima”.

Os romanos achavam a circuncisão estranha porque não era natural. Por que não celebrar o corpo humano como D-s o fez? D-s, disse Rabi Akiva ao governador romano, valoriza a cultura, não apenas a natureza, o trabalho dos seres humanos, não apenas o trabalho de D-s. Foi esse conjunto de ideias – que D-s deixou a criação inacabada para que pudéssemos nos tornar parceiros na sua conclusão; que, respondendo aos mandamentos de D-s, nos tornamos refinados; que D-s se deleita em nossa criatividade e nos ajudou ao longo do caminho ao ensinar os primeiros seres humanos como fazer luz – que fez o judaísmo único em sua fé na fé de D-s na humanidade. Tudo isso está implícito na ideia do oitavo dia como o dia em que D-s enviou os seres humanos para o mundo para se tornar Seus parceiros na obra da criação.

Por que isso é simbolizado no ato da circuncisão? Porque se Darwin estava certo, então o mais primitivo de todos os instintos humanos é buscar passar os genes de cada um para a próxima geração. Essa é a força mais poderosa da natureza dentro de nós. A circuncisão simboliza a ideia de que há algo maior do que a natureza. Passar nossos genes para a próxima geração não deve ser simplesmente um instinto cego, um impulso darwiniano. A aliança com Abraão foi baseada na fidelidade sexual, a santidade do casamento, e a consagração do amor que traz nova vida ao mundo (4). É uma rejeição da ética do macho alfa.

D-s criou a natureza física: a natureza traçada pela ciência. Mas Ele nos pede para ser co-criadores, com Ele, da natureza humana. Como R. Abraham Mordecai Alter de Ger disse, “Quando D-s disse, ‘Façamos o homem à nossa imagem’, para quem Ele estava falando? Para o próprio homem. D-s disse ao homem, Façamos – você e Eu – juntos o homem” (5). O símbolo dessa co-criação é o oitavo dia, o dia que Ele nos ajuda a começar a criar um mundo de luz e amor.

NOTAS:

  1. Quintus Tineius Rufus, governador romano da Judeia durante a revolta de Bar Kochba. Ele é conhecido na literatura rabínica como “o perverso”. Sua hostilidade às práticas judaicas foi um dos fatores que provocou a revolta.
  2. Tanchumá, Tazria, 5
  3. Isso é também assinalado na oração da Havdalá que menciona cinco havdalot, “distinções”, entre sagrado e profano, luz e escuridão, Israel e as nações, Shabat e os dias da semana, e ao final “que distingue entre o sagrado e o profano”. Isso se relaciona com Gênesis 1 onde o verbo lehavdil – distinguir, separar – aparece cinco vezes.
  4. É por isso, como destaquei em outro lugar, que Gênesis não critica a idolatria, mas sim critica implicitamente, em pelo menos seis ocasiões, a falta de uma ética sexual nos povos com quem os Patriarcas e as Matriarcas tiveram contato.
  5. Avraham Mordecai Alter de Ger, Likutê Yehudá.

Texto original: “THE EIGHTH DAY” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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